O ano era, digamos, 2055. Alguns grupos haviam tomado o poder na terra e há tempos vinham doutrinando a população no sentido de que democracia era um sistema arcaico e falho. Desde 2040 um Super Rei governava o planeta, e cada país tinha seu sub-rei, que chamaremos aqui simplesmente de sub.
Em 2030 havia sido descoberto que Marte também eram habitado. Mas ao invés dos simpáticos homenzinhos verdes, ou ainda dos temíveis seres dominadores que nas histórias sempre exigiam conversar com o líder, foram encontrados nesse planeta seres muito semelhantes aos humanos, porém mais rudimentares, que viviam em tribos e se envolviam em sangrentas batalhas. Os recursos naturais eram escassos, e as lutas geralmente eram por comida. E não havia, lá, nenhum mediador, ninguém que se interessasse em dar fim a tais conflitos. Marte era o caos.
A terra, por outro lado, era um lugar bastante pacífico. Guerras? Coisas do passado. Quem ousasse falar em conflito era sumariamente executado, e assim a boa e justa ordem era sempre mantida. Vários soldados estavam imiscuídos na população, nas lojas, nas repartições públicas, prontos a denunciar suspeitas de desobediência. Além disso, para praticar qualquer ato o habitante tinha que preencher formulários e formulários. Ficou doente? Preenche um formulário. Vai casar? Dá-lhe formulário.
Nessa época, Zig, Art e Zen eram três amigos e todos trabalhavam para o sub do Brasil, numa pequena província chamada Natal. Funcionários dedicados, deixavam na repartição, diariamente, dez horas de suas vidas. Acreditavam nos propósitos declarados na TV pelo sub: justiça, paz, ética, cumprimento de metas. Cumprimento do dever social.
Porém tinham lá seus segredos...sim, os três eram sonhadores. Zig tinha conseguido esconder no seu capsulamento (ou apartamento-cápsula) alguns objetos do passado: um livro de história, que falava sobre a tal democracia, e um livro de poesia. Este último era especialmente intrigante, pois quando lia os versos sobre liberdade ele era invadido por estranhas sensações químicas e psicológicas...o livro era perigoso, dava-lhe vontade de perder a razão e sair contestando e querendo viver em um mundo diferente. O horror! Por isso lia no máximo uns três versos de cada vez e depois fechava o livro, assombrado. Acreditava que havia alguma coisa misteriosa e proibida naquelas páginas. Na escola tinha aprendido sobre os malefícios de umas ervas alucinógenas que eram usadas pelos humanos na era da barbárie...eles fumavam essa erva, sofriam alterações da consciência e depois morriam. Zig desconfiava, temeroso, que as páginas do livro tivessem sido confeccionadas com a tal erva. Mas mesmo assim não conseguia deixar de ler. Na verdade, os três amigos se reuniam toda semana para ler e reler e reler e sonhar.
E foi assim que nossos heróis, com a cabeça secretamente pervertida por história, sonhos e poesia, decidiram inovar e tiveram uma idéia: ora, por que não ajudar os companheiros de universo, os marcianos? Poderiam tentar levar um pouco de justiça e assistência para que eles parassem de se digladiar diariamente. E de sobra ainda poderiam viajar pelo espaço! Então tiveram um plano: partir em uma missão com a finalidade de criar núcleos de justiça e assistência aos necessitados em Marte. Batizaram a missão de “Plunct plact zum” . Não tiveram dúvidas de que iam ter todo o apoio do sub, até porque, além de a missão estar em consonância com os objetivos declarados do reinado, iria cair muito bem nas estatísticas e contar ponto junto ao Super Rei. Então desenvolveram o projeto, analisaram os custos, os benefícios, e satisfeitos e certos do êxito agendaram uma visita ao sub. Um ano depois conseguiram ser atendidos. Quando o sub viu o projeto, examinou distraidamente e disse que o foguete não iria a lugar nenhum, que eles jamais sairiam da terra, pois para isso precisavam de selo, registro e um carimbo do próprio sub autorizando a missão, a qual estava sendo sumariamente negada. Timidamente nossos heróis perguntaram os motivos na negativa, e tiveram como resposta uma raivosa declaração de que as decisões do sub são soberanas e ele não precisa compartilhar os motivos com meros subordinados.
Os três amigos ficaram bastante frustrados; pensaram, pensaram e não entenderam como um projeto tão bom poderia ser barrado, se tinha tudo a ver com os objetivos e a propaganda do reinado do sub. Depois de muito refletir concluíram, perplexos, que a única resposta possível é que a política e a propaganda do sub não coincidiam com seus atos.
A partir daí, perderam toda a alegria com o trabalho e caíram num vazio existencial, numa grande falta de objetivos. Mas por outro lado não havia boas opções de emprego lá fora. Então Zig tentou se matar de overdose, fumando o seu livro de poesia. A idéia era ter a tal alteração de consciência e depois morrer, mas tudo que conseguiu foram umas queimaduras no rosto e a conseqüente obrigação de preencher três formulários explicando o ocorrido. Depois que se recuperou das queimaduras, passou o resto da vida carimbando. Art envelheceu em frente ao seu computador. Zen, que parecia ser o mais calmo dos três, não suportou a desilusão: sua pressão disparou, ele teve um AVC e foi aposentado por invalidez.
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