domingo, 30 de janeiro de 2011

A reinvenção da vida (ou: o amor nos tempos da decrepitude)

"Para as rosas, escreveu alguém, o jardineiro é eterno" (Machado de Assis)

Sempre me causa uma certa “apreensão existencial” ver o elogio supremo da juventude que é feito o tempo inteiro na mídia, e que já foi incorporado ao nosso dia a dia. Claro que a velhice traz desconfortos, dores, indisposições, requer cuidados, mas tentar esquecer que ela existe é uma grande bobagem; como se diz por aí, as opções não são muito boas: é velhice ou morte precoce. O importante é aprender a envelhecer com dignidade, e eu creio que essa dignidade consiste no caminho do meio: é não se deixar consumir por achaques, rugas, aposentadoria e tédio, mas também não lutar desesperadamente para parecer adolescente, fazendo mil cirurgias e estripulias (vide muitas “celebridades” da TV e da revista Caras). É saber se adaptar, tentar sempre melhorar e cultivar sobretudo a serenidade, porém sem nunca perder a capacidade de se espantar. Mário Lago tem uma frase bem bacana sobre esse equilíbrio: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: nem ele me persegue nem eu fujo dele. Um dia a gente se encontra”. 

E é sobre essa capacidade, sobre esse equilíbrio sutil que escrevo agora. Entre 2006 e 2007 li o encantador livro de Garcia Marquez (perguntar não ofende: e existe algum livro dele que não seja no mínimo encantador?), Memórias de Minhas Putas Tristes. 
Capa do livro
Conta a história politicamente incorreta de um senhor que, no ano em que completou 90 anos, quis se dar de presente “uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”. E eis que esse senhor se apaixona pela primeira vez em sua longa vida. Conhece a paixão aos 90 anos de idade, e essa descoberta ocasiona outras descobertas a respeito do seu próprio ser:
Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo no zodíaco.”
Capa do livro
Aí vi que antes de começar a história Garcia Marquez cita um trecho do livro “A casa das belas adormecidas”, do japonês Yasunari Kawabata. 
Claro que fiquei com vontade de conhecer o livro, e tratei logo de adquirir. E li, fascinada, o livro de Kawabata. É um desses livros de poesia em prosa. Trata da história do velho Eguchi, que vai a uma casa (espécie de prostíbulo) para ter encontros com garotas que foram previamente adormecidas, à base de narcóticos. Os velhos são proibidos de manter relações com as meninas, podendo apenas contemplá-las e no máximo acariciá-las. A partir da experiência com as moças adormecidas, Eguchi vai fazendo muitas reflexões e descobertas:
A decrepitude hedionda dos pobres velhotes que procuravam aquela casa ameaçava atingi-lo dentro de alguns anos. Quanto da imensurável amplitude do sexo, da insondável profundidade do sexo ele teria tocado na sua vida de 67 anos? Além disso, em volta dos velhotes nasciam incontáveis peles renovadas de mulheres, peles jovens, de garotas bonitas. Os desejos de sonhos impossíveis, o lamento pelos dias que lhes escaparam e que estavam perdidos para sempre não estariam impregnando os pecados daquela casa secreta? Eguchi já havia pensado que as garotas adormecidas o tempo todo seriam uma eterna liberdade para os velhotes. As garotas adormecidas e mudas certamente lhes falavam tudo que eles gostariam de ouvir.
O tema das descobertas possíveis na velhice é pouco explorado, embora tenha esse imenso potencial para a beleza e o lirismo. 
Foto do filme 
E eis que no final do ano passado ganhei de presente o DVD Elsa e Fred, uma comédia romântica bastante atípica, um filme delicioso. 
 Elsa tem 83 anos, é uma argentina escolada na arte dos trambiques. Fred é um tímido viúvo que vai morar no prédio de Elsa. Ele é do tipo que passou a vida inteira sem sair da linha: foi casado durante anos com uma esposa exemplar e ultra organizada, considera-se uma pessoa muito doente, tem uma alimentação totalmente regrada e é avesso a qualquer excesso. Já Elsa, além de trambiqueira, é encantadora, aventureira e imprevisível. Tem o sonho de conhecer a Fontana di Trevi ( por causa do filme "A doce Vida", de Fellini, com Anita Eckberg tomando banho). Um par improvável, em um lindo e divertido romance. 

E o que os dois livros e o filme têm em comum? 

Ora, a reinvenção da vida, numa fase em que tudo parece fadado à rotina, à lúgubre espera da morte. Atenção, muita atenção: eu não falo de uma mulher se transformar em Suzana Vieira e achar que pode tudo, e querer viver numa velocidade adolescente, nitidamente evitando a todo custo se reconhecer como pessoa e mulher de idade avançada. Nem dos homens que pensam eternamente que têm 20 anos. Falo de pessoas que se reconhecem como velhas, que não negam essa realidade, mas não a consideram um entrave para a vivência de novas emoções. Um amor, uma viagem. Aprender a pintar. Fazer um curso de gastronomia. Aprender, aprender algo novo: seja um novo jeito de se relacionar, seja uma nova língua, um novo hobby ou até mesmo uma nova profissão. Aprender, creio eu, é o que dá em grande parte um sentido, um impulso aos nossos dias. Porque a gente nem sabe se vai haver outra vida, mas se houver, com certeza a única coisa que a gente leva é o que aprende, o que experimenta, enfim, o que vive. Porque, já dizia Cecília Meireles, “a vida só é possível reinventada”. E porque, como diz Manoel de Barros, “o tempo só anda de ida”.


(PS: Este texto é também um agradecimento ao amigo A. Medeiros, que me presenteou com o belo DVD "Elsa e Fred".)

Um comentário:

Ribamar Lopes disse...

Belíssimo texto! Compartilho da idéia esposada.