terça-feira, 29 de junho de 2010

Historinha desromântica

I. O NOME  
Não tinha dúvidas: nome era sina. E a mãe não se atualizava, até hoje enchia o saco com aquelas músicas velhas e chorosas, um tal de Cartola e a fulaninha, a Dolores Duran. Pronto. Porque gostava da fulaninha, a filha tinha que se chamar Dolores do Nascimento.
DOLORES
Origem: LATIM
Significado: LAMENTAÇÕES. 
Como se não bastasse, ainda era um nome totalmente fora de moda. Bem que podia se chamar Patrícia, Gisele, Adriana ou até mesmo Maria. Maria ainda era aceitável. Mas Dolores…ah, meu pai do céu! 

 II. A SINA 
Aquele Kitnet mais parecia uma casa de cachorro. Tinha todas as semelhanças: ficava no quintal de uma velha senhora - o conhecido “puxadinho” feito para alugar - era escuro, pequeno, escondido.  Micro sala, mini banheiro e quartinho. Quartinho da mãe, sala de Dolores. Dormia na sala.  Saía de casa às sete da manhã, corria para pegar o ônibus.  Servia café e água numa loja chique da Afonso Pena. Só conseguiu aquele emprego porque sua mãe trabalhou com dedicação absoluta durante vinte anos na casa da dona da loja. Uma dedicação que beirava a humilhação. Mas se não fosse por isso, não seria aceita em loja chique, mesmo para servir água e café. Tinha certeza. Ai, era feia, muito feia. Baixinha. Gordinha. Cabelos imprestáveis e sempre presos. Em tempos de escova definitiva, progressiva, escova de leite, morango e chocolate aquele cabelo era uma afronta. E o nariz? Nariz grosseiro, de lavrador. Pele áspera. Parecia mais uma bóia-fria, cortadora de cana.  
Mas qual era a sina mesmo, imposta por esse nome horrendo que significa “lamentações”? Não era só a de ser pobre e feia não. Era a de ser invisível. Davam-lhe ordens como quem fala com uma parede.  Ia servir água? Não passava de um veículo que transportava o copo. Mas terminou aceitando sua invisibilidade e, mais do que isso, aprendeu a exercitá-la. Um perfeito robô ao servir chazinhos e cafés, uma branca e inerte parede. 
Só que a noite era impiedosa. Quando deitava, exausta do trabalho e do cursinho, naquele colchão espremido entre a TV e o sofá, a invisibilidade lhe parecia insuportável. Um olhar, era tudo que desejava nessas horas.  Recitava mentalmente como se fosse um mantra: bastaria um olhar.  Um que fosse só seu. Já passava dos trinta e isso nunca tinha acontecido de verdade...

 III. UM OUTRO NOME   

“Incenso fosse corpo” 

Teu corpo, incensário
Insensato
Desprotegido
Nu
Aberto 

Rijo, me acendo
Te penetro, me consumo 
Me dissipo, te perfumo

Cinzas, o resultado
Dessa paixão insana e crua
E teu corpo, ali parado
Esperando, à luz da lua
Outro incenso, outro amor
Que em você se desconstrua

Terminou os versos e sorriu, satisfeito. Nem precisou do dicionário dessa vez. Ah, estava progredindo nas poesias. 
O nome era Carlos. Roberto Carlos, mas ele preferia pensar que era só Carlos, como o poeta que também era funcionário público. 

IV. UMA OUTRA SINA 
Carimbos, papéis timbrados, impressoras, computadores, mesas, arquivos, papel, muito papel. E separava, carimbava, arquivava. Robô que durante quase todo o dia ficava vendo o passeio de letras frias diante dos olhos. 
Mas a noite, ah, a noite era outra coisa. Eram os versos, o erotismo, e tinha mesmo ocasiões em que ia às lágrimas lendo os próprios poemas. Quando tomava vinho, então, era um êxtase. Um dia haveria de mostrá-los a alguém, e ela ia ficar doidinha...
Enquanto esse dia não chegava, andava por aí, olhar baixo, sem muita coragem de encarar as mulheres. Ô povinho complicado, difícil...elas sempre têm essa história de idealizar demais, essa coisa infantil e fútil de ainda querer príncipes...ele sabia que não era um príncipe, tinha consciência disso.  Era apenas o vizinho sem rosto que não faz barulho, o funcionário pontual, cordial e inexpressivo. 

V. O ENCONTRO 
Fim de ano, véspera de natal, caos. Dolores teve que fazer três horas extras. Onze horas de trabalho, vejam só. Não tinha jeito, naquela noite não iria mais para o cursinho.  De qualquer modo, não ir para o cursinho era até bom, pois poderia dormir mais cedo.  Isso lhe deu uma animação que gerou um esboço de sorriso, e andava sorrindo distraída quando...
 Carlos voltava de uma loja com o presente da sua mãe, e com o encontrão o presente caiu. Constrangidos, ambos se abaixaram ao mesmo tempo para apanhar o pacote, como naquelas velhas cenas de novela.   Quando retornaram (foi ele quem pegou o pacote), o olhar de um penetrou no olhar do outro. 
- Você é bonita …
- Ta brincando!
- Claro que é...eu adoraria soltar seus cabelos!
- isso seria estranho…
- não, não seria. Seria ótimo. 
- Mas estou tão cansada…
- Posso desapertar tua roupa e te livrar do cansaço…
-  (…) ?
- não, não desvie os olhos. Experimente... 
Bom, mas o diálogo acima foi apenas imaginado pelo narrador. O que aconteceu de verdade foi uma troca muda de olhares e uma pequena flama de interesse mútuo. Mas os dois, na timidez forjada e maturada no fracasso, logo apagaram essa faísca e retomaram suas expressões habituais. Ele pediu desculpas a ela, como quem pede a uma parede inerte e branca. Ela pediu desculpas a ele, como quem cumprimenta o vizinho silencioso e sem rosto. 
Dolores tomou seu ônibus e se foi, definitivamente, para Lagoa Seca; Carlos se dirigiu para  Cidade da Esperança. Os dois nunca mais se viram. 


(2006. PS: O título do poema do personagem Carlos foi inspirado numa poesia de Leminski chamada "Incenso fosse música")

Semântica ao léu

No voar da tarde
Entre em sua caixa
Ligue o tapete
Alforrie as cortinas
Deite relaxadamente no seu cachorro
Feche as retinas
Escute o latir dos pássaros
Sinta o vento que eriça os pêlos do seu pensamento
Morda o pulsar compassado e calmo do seu estômago
Concentre-se na sua trans
piração

(Engolir palavras
 Mastigar sentidos
 Vomitar o caos) 

(2010)

domingo, 27 de junho de 2010

O Recife e eu

Recife tem ruas sujas e esburacadas
Violência sempre à espreita
E os canais da Agamenon Magalhães
Uma veneza fajuta e malcheirosa
Mas tem também o carnaval do Recife antigo
O cais e o capibaribe
Capibaribe seco de manhã, cheio à tardinha
Transbordando em meus olhos
Deserto. Multidão. 
Miséria e os arranha-céus da Avenida Boa Viagem...
A antítese em cada esquina
Em cada detalhe
Em Recife conheci Célia
mulata gigante 
com quem fumava cigarros sem filtro depois do almoço
No Recife eu cresci
Cresci trinta anos em três
à custa de solidão e resistência
A ti, Recife
cidade medonha e linda
Personificação de meus maiores medos
Recanto de desilusões
Mas também de descobertas
Dedico o lado obscuro da minha alma. 

(2004)

Encontro (à moda de Julio Cortazar)


Meus olhos são armadeiras que lançam uma teia sobre você e te forçam a deitar, aprisionada. Me aproximo e dou início ao ritual. Percorro o seu corpo, como um lápis traça as linhas de um desenho para que ele possa existir.  Primeiro os pés, muito brancos.  Com um pincel imaginário, realço o vermelho sangue de suas unhas, enquanto você me olha, entre divertida e curiosa (assustada?).  Depois acompanho as curvas das suas pernas lisas e longas, que me conduzem às coxas. Coxas com curvas bailairinas, que dão voltas suaves, quase etéreas, que me deixam tonto quando desembocam na fina cintura.  Circundo a cintura, brinco de girar um cinto de rosas, as pétalas vermelhas numa guerra mortal com a alvura da sua pele. Com os dedos faço um “x”  invisível no seu ventre, e minha mão sobe delicada e quase imperceptivelmente. 
E sigo, porque minha missão é te finalizar, e encontro os teus seios,  redondos, pequenos, quase tímidos. O belo desenho pede um beijo, que pinta de rosa os mamilos.  Subo pelo pescoço, de lá vejo a linha do queixo, suave. Os cachos negros emolduram o rosto. Faço a tua boca rosada, um pouco trêmula.  Sobrancelhas espessas, testa delicada, pequeno nariz. Não esqueço nenhum detalhe. Por fim, os olhos. Eu os quero negros, grandes. E pinto neles uma sombra, um medo, uma súplica, um amor hesitante. Aí meus olhos penetram nos seus, e vão corroendo, dissolvendo a sua córnea, e é como se os meus fossem os raios de sol direcionados firmemente por uma lupa para uma frágil folha de papel em branco, que não resiste e se queima. E quando você já não pode ver mais nada, eu lentamente me levanto, aprecio, de longe, o belo quadro e, sem uma palavra, vou embora. 

terça-feira, 22 de junho de 2010

Mario de Sá Carneiro reinventado

Eu sou eu e sou o outro
Sou qualquer coisa de dialético
Pilar da ponte de mistério
Que vai de mim até o outro.


PS: O original está aqui

Inquietações

Como se mede a duração de uma vida? Em anos, horas, realizações, ímpetos?
O ano é 2015. Isso considerando, claro, que o mundo não vai acabar em 2012. O que você andará fazendo? Onde estará trabalhando? Já pensou no que espera da sua vida nos próximos cinco anos? Gostará das mesmas pessoas? Terá os mesmos amigos, o mesmo gosto musical? Os mesmos programas de sábado à noite? Amará a mesma mulher, o mesmo marido? Acreditará em deus? Quantas crenças e idéias vão se desfazer, quantos medos vão esvaecer, quantos novos surgirão?  O tempo não parece uma boa medida, pois é fluido, subjetivo e incerto. Uma vida pode ser um tempo longo demais para se permanecer com o mesmo trabalho, os mesmos apegos, as mesmas idéias e aspirações. E ao mesmo tempo é um tempo muito curto pra se imaginar eterno e ter a ilusão de estar realmente construindo algo, de estar criando raízes e ser um “eu” imutável.

“Vezes sem conta tenho vontade
 de que nada mude
Meiavoltavolver
Mudar é tudo que pude"
(Leminski) 

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago e o precipício do pensar

Certos livros são perigosos. Você começa a ler,  como quem se aproxima da beirada de um precipício. De repente, se desequilibra, perde a velocidade da queda e depois não tem mais como voltar. Você caiu. O precipício (digo, o livro) mexeu com suas idéias e te deu uma pancada.
Foi assim com “O evangelho segundo Jesus cristo”, de Saramago. Eu devia ter uns trezes anos, era católica e “temente a Deus”, e esse livro plantou dúvidas , inquietações e até muita raiva do autor. Como ele ousava dizer tudo aquilo? 
E hoje todos os jornais anunciam que ele morreu e foi publicada uma nota afirmando que foi uma morte serena, em paz. Acho que morre serenamente quem viveu intensamente, quem viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Não sei se foi esse o caso de Saramago, pois não conheço detalhes da vida dele, mas a julgar por um poema belíssimo de seu livro “Provavelmente alegria”, ele experimentou e descobriu a vida de formas muito especiais: 

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste. 


Leminski e Clarice: a linha que nunca termina

Paulo Leminski e Clarice Lispector dificilmente aparecem juntos em artigos ou críticas literárias. Isso se deve a vários fatores. Por exemplo: em Clarice se destaca a prosa; em Leminski, a poesia (apesar de “Catatau” ser tido por muitos como um livro à altura de Finnegan’s Wake ou Ulisses, foi pouco lido e sequer é vendido atualmente em livrarias). Clarice é conhecida por ser uma autora “hermética”; Leminski é um “cachorro louco”, “Kamiquase”, bandido, samurai malandro, cheio de humor e ironia.  Então de onde tirei a idéia de traçar uma linha diagonal e estabelecer uma conexão entre os dois?
Tudo começou quando li a biografia de Leminski: O bandido que sabia latim, de Toninho Vaz.  Paulo Leminski era mesmo um cachorro louco, como consta no seu poema de autodefinição. Viveu com a intensidade de mil raios. Casou, foi professor de cursinho, descasou, morou em comunidade, lutou judô, encheu a cara, trabalhou com publicidade, encheu a cara de novo, flertou com o zen, fez hai cai, construiu poesias de rara beleza, foi parar num hospital de queimados, encheu a cara, teve um filho que morreu de câncer ainda criança, namorou com a tropicália, foi chamado de “poeta realce”, encheu a cara e morreu. Mas tudo isso foi consciente. Ele tinha dentro de si uma urgência, uma voz que gritava, que discordava, que lhe impunha um sentimento de estranheza e  dizia que o fato de viver neste mundo era uma “simples coincidência”. Ele tinha vida demais, autenticidade demais, lirismo demais, erudição em excesso. Um cara que sabia de cabeça se uma determinada citação estava ou não no livro “Finnegan’s Wake”, de Joyce. Capaz de um rigor técnico incrível em poesias curtas, de revelar uma nostalgia irônica, uma alegria triste e uma felicidade que se sabe imperfeita e precária (e talvez por isso mesmo tão boa!). 
Minha teoria é a seguinte: Leminski não cabia em si, não cabia em uma vida. Então ele explodiu. Explodiu nas poesias e no consumo excessivo de álcool. Ele sabia que não dava para continuar, que se continuasse morreria, mas mesmo assim seguiu em frente. 
E Clarice?
Bom, ano passado li também a biografia dela, que me causou uma grande impressão. Li sobre detalhes antes desconhecidos, como o sofrimento de sua família antes de chegar ao Brasil, a doença da sua mãe, a infância difícil, a morte do pai antes da publicação do primeiro livro. O casamento com um diplomata, as viagens, o sofrimento por viver uma vida que não parecia ser dela. A estranheza de si mesma quando participava dos jantares requintados e formais. A necessidade de dizer à irmã, nas cartas, que nunca desejasse ser uma pessoa diferente, que fosse apenas ela mesma. 
Então a impressão que tive foi a de que Clarice tinha dentro de si esse mesmo impulso incontrolável de vida,  espécie de pulsão de transcendência, um não caber em si. No fundo, ela era bastante parecida com Leminski nesse sentido. Mas viveu aprisionada por muito tempo...usando as palavras de um verso de Leminski, Clarice tinha o silêncio de quem grita.  Enquanto Leminski explodiu, Clarice implodiu. Construiu uma literatura introspectiva, e com ela lidava com as partes tempestuosas e obscuras de seu próprio ser. Nos livros ela podia ser má, confusa, podia dar livre curso às complicadas teias de pensamento e, no fim, morrer atropelada.
E na “vida real” cada um morreu como viveu: Leminski morreu de excesso, de cirrose hepática. Clarice morreu de câncer (e já dizia uma personagem de  João Ubaldo, que o câncer é a revolta das células insatisfeitas e reprimidas). 
Cada um lidou com os excessos e inquietações à sua maneira, e os dois deixaram uma literatura incrível, que fala de vida, de verdade, de disfarces, de morte e de redenção. E com essa literatura realizaram uma profecia poética de Leminski: tudo o que eles disseram, ainda que em prosa,  virou poesia. 


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Eu quero é outro rabo no jumento

Lembro que por volta de 1998 pipocaram ações de indenização por danos morais ajuizadas por consumidores. Acontecia principalmente de, na saída,  os sensores das lojas sinalizarem, o consumidor ser abordado por seguranças e ser constatado que, afinal, ele não estava levando nenhum produto e o problema era do sensor. Aí certo dia, naquela época, ouvi uma pessoa dizer: ah, se aquele “negócio” apitasse quando eu saísse das lojas americanas...ia fazer a maior confusão, arrumar umas testemunhas e ganhar indenização por dano moral! 

Clap clap clap. Palmas pra ela. 

Essa afirmação resume o problema dos danos morais hoje. Tem muita gente que não deseja viver em paz, não deseja ser respeitado. Deseja muito mais uma indenizaçãozinha. Então provoca, cria caso de tudo e até inventa.

A indenização por danos morais é uma grande sacada jurídica porque mexe com algo muito importante para o ofensor: o bolso. Sem dúvida é um avanço. Ofendeu, vai pagar, playboy. Às vezes é com uma "ameaça" de processo por danos morais que conseguimos  um mínimo de respeito e atenção no atendimento massacrante de operadoras de linhas aéreas, celulares, cartões de crédito, bancos etc etc etc.  Mas as pessoas, ah, as pessoas... Elas burlam os sistemas, distorcem, manipulam...Então ai de quem olhar feio, ai de quem não cumprimentar, ai de quem criticar, ai de quem discordar. Infelizmente em muitos casos a indenização virou arma de políticos e “personalidades” ditatoriais (apontada preferencialmente para jornalistas), escudo de recalcados e meio de obtenção de uma graninha fácil para desocupados. 

Espero que chegue o dia em que as pessoas se respeitem mais e dêem valor, antes de qualquer coisa, ao resgate da sua própria dignidade. Ou, com a sabedoria que reside na simplicidade, em que todo mundo queira de volta o rabo no jumento, e não o pagamento:



Você disse que é brabo, Nascimento

Você cortou o rabo do jumento

Eu não quero pagamento, Nascimento

Eu quero é outro rabo no jumento


(Elino Julião)


quarta-feira, 16 de junho de 2010

Teologia da intolerância e do atraso

Na revista Isto é, edição de 02 de junho, saiu uma entrevista com Leonardo Boff, teólogo, intelectual, franciscano, artífice da teologia da libertação. Ele, que conviveu de perto com o atual papa, o alemão Joseph Ratzinger, fala sobre os anacronismos da igreja católica e o conservadorismo do pontífice. Comenta o fenômenos dos padres cantores com uma observação cheia de lucidez e de beleza: "O cristianismo não pode funcionar como um ansiolítico que nos alivia, mas deve falar às consciências para que as pessoas tomem decisões que vão na direção do outro. Para mim, a mensagem cristã não significa buscar um porto seguro onde ancoramos para repousar. Mas é um chamado para irmos ao mar alto, para enfrentar as ondas perigosas. E não pedimos a Deus que nos livre das ondas, mas que nos dê força e coragem para enfrentá-las."

Uma interessante entrevista, para ser lida de coração aberto. 
Padre Zezinho, que também é cantor mas não tem nada a ver com os marcelos, fabios e cia ltda, já havia dito:
E se eu rezar por meu irmão
E em nome dele invocar teu nome
E se eu cantar uma canção
E se eu dançar por meu irmão
E me esquecer que meu irmão tem fome
Será engano meu
Não é religião querer que as coisas
Fiquem como estão e não buscar aqui 
Alguma solução
E eis que na edição seguinte, na seção “cartas”, alguns leitores escrevem dizendo que a teologia da libertação é uma traição a cristo e à igreja e que Leonardo Boff demonstrou, na entrevista, enorme desobediência , “grande e primeiro pecado do mundo”. Esse mesmo leitor diz que a revista deve fazer entrevista com teólogos engajados, que propaguem a salvação sem polêmicas desnecessárias. 
Sem querer, esse leitor resume a ideologia e a base da religião católica: a mera aceitação de dogmas e a busca da salvação individual. Pode fazer caridade, pode dar um trocadinho ao menino que pastora o carro no estacionamento da igreja, mas não precisa passar disso. 
O catolicismo (não só ele, é verdade) prega que o homem é um ser miserável, que só de nascer já pecou. E é incapaz de dar um passo por si próprio. Ele precisa da condução e jamais vai alcançar qualquer tipo de redenção se não for pela obediência cega aos preceitos e dogmas. O leitor diz: a desobediência é o grande e primeiro pecado do mundo. É engraçado, porque eu achava que existiam pecados bem maiores, como o de matar, o de roubar de crianças e adolescente toda a referência de bondade e de paternalismo (padre vem do latim pater) com abusos sexuais. Não, não, o pecado máximo é desobedecer. Mas a grande pergunta é: a quem desobedecemos quando rejeitamos os preceitos sufocantes da igreja católica?

“Uma vez a cada cem anos, Jesus de Nazaré se encontra com Jesus dos Cristãos num jardim entre as colinas do Líbano, e conversam longamente...
...e cada vez, Jesus de Nazaré vai-se embora, dizendo a Jesus dos cristãos: "Meu amigo, receio que nunca, nunca cheguemos a concordar". (Khalil Gibran)




segunda-feira, 14 de junho de 2010

A ternura que vai no fio da lâmina samurai


Quem viu “O último samurai” certamente se recorda do suicídio ritual que eles realizavam, o chamado seppuku (ou harakiri). O objetivo do suicídio é restabelecer a honra do samurai ou da sua família,  evitar a rendição e o aprisionamento por tropas inimigas, ou ainda a demonstração de devoção ou lealdade ao seu senhor. O suicídio em si é precedido de diversos atos, como banhos, purificações etc. O samurai corta o seu ventre e morre por evisceração. Caso o processo esteja muito lento e doloroso, uma espécie de assistente, chamado kaishakunin, decepa a sua cabeça, a qual, todavia, não pode rolar no chão, pois isso é considerado desonra. A cabeça tem que ficar pendendo. Informações interessantes podem ser encontradas aqui.

Mas apesar do caráter singular desse suicídio, o ritual em si não foi o que mais despertou a minha atenção, e sim o modo como esses guerreiros lidavam com a morte. Para nós, ocidentais, a morte é tabu, é o fim, e mesmo entre os mais religiosos é raro encontrar alguém que encare a sua proximidade e a sua certeza  com serenidade. É difícil, por exemplo,  falar sobre a morte com crianças. É um assunto duro, e tanto a morte, quanto o assunto “morte”, são evitados a todo custo.  Os samurais, todavia, parecem ter uma visão completamente diferente. Um dos tópicos de seu código de conduta é eu não tenho vida ou morte, faço das duas uma, tenho vida e morte. Sábios samurais. Vida e morte são mesmo inseparáveis. Uma contém a outra. Para ilustrar essa grande diferença de concepção da mesma idéia, conto a história de Yukio Mishima.

Yukio  era descendente de família samurai. Foi um escritor de diversos romances e também de narrativas curtas (espécies de contos). Chegou a atuar num filme de gângsters, a gravar discos e participar de programas de televisão. Era conhecido por um certo exibicionismo, e também pelo homossexualismo. Cultuava as artes marciais e era existencialista. Ufa...Mas é isso mesmo. Mishima não era um só. E ele cresceu numa época difícil para o seu país, vendo a cultura e os valores antigos serem estilhaçados.  E foi esse japonês, que se multiplicou durante a vida, quem resolveu unir as pontas da sua obra literária e filosófica e de sua própria existência com um harakiri.

Em um belo dia do mês de novembro de 1970, ele seqüestrou o comandante do quartel das forças armadas de Tóquio, junto com os companheiros do grupo Tate no Kai. Fez um discurso contra a ocidentalização do Japão e a decadência dos códigos de honra, discurso do qual muitos riram. Depois, para surpresa e terror de quem assistia, praticou o harakiri

O que impressiona é justamente a preparação do escritor. Antes do suicídio ele terminou seus livros, sendo o último, Sol e aço, uma reflexão sobre as relações entre o corpo e a mente, o fundo e a superfície, a vida mental e a existência corpórea (In: Leminski).  E o mais surpreendente: Yukio estava, então, no auge da sua forma física. E era proposital. Ele se preparou para o momento, pois quis dar à morte o melhor de si. Não um corpo decrépito ou frágil. Não a rendição de quem não tem perspectivas ou perdeu o “gosto” pela vida. A morte parece ter sido o ápice de todo o seu trabalho, de todo o seu esforço...de toda a sua vida. O que movia Yukio? Não sei...rigidez, loucura, anacronismos, lealdade, busca de algo que não existia mais...Paulo Leminski, poeta curitibano, muitas vezes apelidado de “samurai malandro”, disse que Yukio, com seu sangue, escreveu com aço na pele da sua vida as letras de sangue que diziam: “Eu não concordo”. Mishima não concordava com o que via ao seu redor e decidiu agir, costurando as suas contradições com o fio brilhante e polêmico do suicídio ritual. 
Leminski  fez um belo poema chamado Aço e Flor inspirado em Yukio:

Quem nunca viu 
que a flor, a faca e a fera 
tanto fez como tanto faz, 
e a forte flor que a faca faz 
na fraca carne, 
um pouco menos, um pouco mais, 
quem nunca viu 
a ternura que vai 
no fio da lâmina samurai, 
esse, nunca vai ser capaz

Particularmente não tenho nenhum juízo de valor sobre o harakiri ou sobre o controverso Yukio; apenas deixo que o meu espanto e o meu encanto fluam diante de um mundo conceitual totalmente diverso do que eu conhecia, repleto de lâminas, sangue e...uma estranha delicadeza. 


sábado, 12 de junho de 2010

Baladinha romântica para o dia dos namorados


Entre guitarras e amplificadores mora o meu grande amor. Nós nos conhecemos em pleno carnaval. O frevo comemorava seus 100 anos, mas meu pé estava engessado. Eu havia sofrido uma queda “cinematográfica no cinemark”, quando descia as escadas com um saco de pipoca. Dois exilados do axé, das melecas e mela-melas do carnaval que se festeja por estas bandas, passamos os dias conversando. E ele era inteligente e tocava guitarra numa banda, o que eu achava um charme. Então criei coragem e, com o ar mais casual que consegui forjar, dei um beijo. 

Quando fomos morar juntos, foi uma confusão. Éramos dois solteirões cheios de manias e eu levei junto uma família: dois akitas, também cheios de manias. Tivemos (e ainda temos) que aprender muito. Eu, com meu individualismo, minhas teorias sobre o “mito do amor romântico” e a fragilidade das relações humanas, estou aprendendo, na convivência com ele, que amar é dar um passo adiante, é ser voluntário numa missão difícil. É chegar bem perto da beira do abismo, sem medo de ser derrubada pelo vento, só porque de lá a vista é mais bonita. 

E  a pele dele tem um cheiro maravilhoso de manhã, ele tem um sorriso de menino que acabou de aprontar alguma, gosta dos Beatles e dos Rolling Stones. A nossa vida em conjunto tem sabor de vodka (absolut, please) e muito rock 'n' roll.


Minha livraria ideal

Pode ter livro de vampiro, eu não me importo. Até li um há poucos dias, que me foi emprestado por um rapazinho, e me diverti bastante. Mas Fabio de Melo (o padre) é demais pra mim. Auto-ajuda, nem pensar. Eu deixo entrar Paulo Coelho (confesso: na adolescência li "O Alquimista" e gostei. Não vou cuspir no pratinho em que comi).  Sidney Sheldon, alguém ainda lê? Por consideração ele também pode entrar, pois há milênios eu li com muito gosto “Se houver amanhã”. Mas um exemplar de cada, todos juntos numa prateleira só, pelarmodedeus não me vai misturar nenhum desses com Hesse ou Garcia Márquez. 

Livros de direito, medicina, engenharia e afins, por favor, passem longe. Mas psicologia não pode faltar, como também filosofia. 

A arrumação tem que seguir critérios diferentes e sempre mutáveis.  Compreendo que a ordem alfabética facilita na hora de procurar um autor numa livraria normal, mas essa é especial. Aqui os vendedores são apaixonados por literatura e sabem onde achar cada livro, e mais: são ótimos de papo. Um diálogo comum na minha livraria ideal, entre um cliente e um vendedor:

- estou querendo ler a biografia de Clarice Lispector, escrita por Benjamim Moser, mas estou em dúvida...você sabe se o livro é bom?

- ah, tá brincando. É mais do que bom, é apaixonante. Moser fez uma pesquisa que durou oito anos, foi bater na Ucrânia, e além disso é um estudioso da obra de Clarice, então o tempo todo ele faz correlações entre a vida e a obra da escritora, fala muito sobre suas influências literárias e filosóficas, além disso existem trechos emocionantes da correspondência dela com outros escritores... ela trocou cartas lindas com Fernando Sabino, você precisa ver. Li em dois dias, freneticamente, e recomendo bastante!

- puxa, que bom. Vou levar, então! Onde é que tá o livro?

- na segunda prateleira do lado esquerdo. Começando por Spinoza, segue uma linha reta e perto de Virginia Wolf, logo depois do “Lobo da Estepe”, de Hesse, você  vai dar em Clarice.  A biografia está amparada no “Encontro Marcado” de Fernando Sabino...

- Valeu...

Então...a arrumação dos livros é temática e baseada em correlações misteriosas, cabendo ao freqüentador e leitor descobrir quais são e até mesmo sugerir outras novas.  Por exemplo, Thiago de Mello fica ao lado de Cora Coralina; logo depois vem Adélia Prado e em seguida Hilda Hilst. Paulo Leminski obrigatoriamente tem que estar ao lado de Alice Ruiz, sua eterna esposa e parceira poética, como também de Torquato Neto e Ana Cristina César.  Sartre perto de Simone de Beauvoir, naturalmente.  É justo que  Jorge Luis Borges fique ao lado dos três volumes do Livro das Mil e Uma Noites, pois ele adorava essas histórias. Junto de Borges, do outro lado, tem que estar Garcia Márquez, o Gabo. Depois vem Julio Cortazar, numa linha de “latinidade” e estilo. Muito cuidado: jamais deixar Gabriel perto de Vargas Llosa, senão no dia seguinte a livraria pode acordar uma bagunça, uma quebradeira só, se Garcia Márquez resolver vingar o soco que recebeu de Llosa em 1976.

E assim eu passaria tardes inteiras, só olhando as prateleiras, imaginando as conexões e discutindo com o vendedor:

- Mark Twain não tem nada a ver com Albert Camus, separa esses dois...

- Bom, considerando "Tom Sawyer" você tem razão, eles são totalmente diferentes, mas lembre daquele livro dele, “O estranho misterioso”...nesse ele pega pesado em questões existenciais!

- ah, é verdade, eu tinha esquecido. Esse realmente se aproxima do Camus. Olha, vou dar uma sugestão: eu colocaria Leminski e Clarice não na mesma linha, mas unidos, assim, por uma linha diagonal, meio torta, sabe? 

- Clarice e Leminski? Essa é nova pra mim, eu não vejo relação entre os dois...

- ah, mas tem. Só que é assunto pra outra conversa, porque agora eu tô de saída. Mas só uma coisa, sem querer pentelhar mas já pentelhando: fora o fato de que são dois velhinhos narigudos e poetas excepcionais, não tem muito a ver Mario Quintana junto de João Cabral. Não dá pé, viu?


quarta-feira, 9 de junho de 2010

Amor e seu tempo

- Você me ama? - perguntou Marthe, sem transição.
De repente, Mersault animou-se e riu muito alto. 
- Eis uma pergunta muito séria. 
- Responda.
- Mas na nossa idade não se ama. Um agrada ao outro, só isso. É só mais tarde, quando se fica velho e impotente, que se consegue amar. Na nossa idade, a gente pensa que ama. É só isso, nada mais. 


(Trecho de "A morte feliz", de Albert Camus. Já o título é de uma poesia de Drummond)

Viva como se ninguém estivesse olhando


Pode começar dançando. Não vale treinar em frente ao espelho. Não vale, na hora “H”, disfarçar e tentar ver se tem alguém prestando atenção, achando bonito, sexy, ou destrambelhado. Atenção: não vale encher a cara e se esborrachar numa pista de micareta. Tem que ser um ato consciente. Mas fica permitido tomar uma caipirinha ou uma taça de vinho pra dar aquele barato básico na cabeça. Tem que ser divertido, e vale o alerta: por incrível que pareça, divertir-se de verdade não é tão fácil assim. 

Desde criança você é olhado e premiado pelo bom comportamento. Se age “mal”, pode até ser comparado com irmãos ou outras crianças, suprema maldade. Cresce. Agora os amigos estão de olho. Se você é diferente, se não tem os mesmos gostos da turma, é sumariamente excluído. O tempo passa. Você vira adulto e agora o grande irmão é uma verdadeira legião: todo mundo quer saber com quem você se deita (a vida é tão estreita!), quem são seus amigos e se você por acaso vai se transformar numa pessoa de sucesso, respeitável. As reportagens, pesquisas e programas de TV dizem como se comportar e se vestir numa entrevista de emprego. Então você consegue o bendito emprego e se torna essa pessoa respeitável.  No trabalho, os colegas e chefes observam. Revistas de moda dizem qual o "must have" da estação. Livros ensinam o que fazer para não ficar só ou, se não está só,  para garantir a permanência da companhia (de preferência enlouquecendo o(a) parceiro(a) na cama). Revistas e TV mostram como é esticado o rosto das pessoas bem sucedidas, como é branco o sorriso, e também ensinam o que fazer para ter aquele rosto e aquele sorriso. As rádios e os programas de auditório tocam os sucessos do momento, os quais são também executados exaustivamente em bares, botecos, supermercados e no meio da rua, nos sons altos dos carros. Você não tem pra onde ir. E chega uma hora em que você já não sabe mais se o que experimenta diariamente é a sua própria vida  ou se apenas desempenha o papel que lhe foi traçado. 

Para recuperar essa autenticidade perdida, tem que respirar fundo e questionar bastante. Duvidar, mudar de idéia, ter ataques de raiva e de alegria, dar um jeito de sair mais cedo do trabalho, tomar um banho de mar às 06:00 da manhã ou parar tudo o que estiver fazendo e sair para fumar (mesmo que você não fume, o que, aliás, é melhor pra saúde, mas é interessante respirar um ar livre e ficar com aquele jeito pensador do fumante enquanto saboreia o cigarro). Mas uma das melhores coisas, definitivamente,  é dançar. Como se ninguém estivesse olhando. Não é fácil. Lembro de ter feito isso pela última vez há uns dois anos. Felizmente o impulso está vivo; com tralhas, obrigações, pressões e exigências por cima, mas lá embaixo eu respiro. E afinal de contas, por mais piegas que pareça a comparação, viver é como dançar. Cabe a cada um estar consciente, prestar atenção na música, mas encontrar, dentro dela, a melodia que vai determinar seu ritmo essencial e particular.


segunda-feira, 7 de junho de 2010

Let's play that



Eu andava muito curiosa em busca de Torquato Neto, ávida por conhecer um pouco mais do poeta/multi mil coisas, depois que descobri a relação entre seu suicídio a música Cajuína. Olhei no Google, li um pouco e “arquivei” para continuar a busca em outro momento.
Até que em um fim de tarde, no trabalho, escuto a música “Um dia desses”, do belo CD “Maré” de Adriana Calcanhoto. Penso que deve ficar ótima no violão e decido pegar a cifra quando estiver em casa. Qual não é minha surpresa quando descubro que foi composta por Torquato Neto. Suprema sincronicidade. Foi o estopim para que eu “desarquivasse” o assunto Torquato e começasse a ler bastante sobre ele, no entanto as fontes na internet não são muito boas. Então em um belo domingo, estou na Siciliano fazendo hora quando, de brincadeira, vou ver se acho alguma coisa de Torquato. Digo de brincadeira porque a Siciliano só vende “best sellers” ou alguns clássicos. Torquato é tido como poeta marginal e não é tão conhecido. Mas para minha absoluta surpresa encontrei, e disponível no estoque aqui em Natal, o primeiro volume da obra completa – Torquatália, que estou lendo.

Uma das coisas mais bacanas de pessoas e poetas como Torquato é a contradição, a urgência, o tudo ao mesmo tempo agora. É lindo ver a ironia convivendo com a doçura, a rebeldia com a precisão e o rigor técnico. O “desafino do coro dos contentes” dançando com uma certa nostalgia...
Ele, o mesmo Torquato, foi capaz de letras que só posso definir como fofas, com grande apelo sentimental, como a já citada “Um dia desses”, que tem um trecho assim:
meu pobre coração não vale nada
anda perdido, não tem solução
mas se você quiser ser minha namorada
vamos tentar, não é?
não custa nada
até pode dar certo ai ai
e se não der eu pego um avião,
vou pra xangai
e nunca mais eu volto pra te ver.


E “cometeu” também poesias maravilhosamente malucas como “Let´s play That”, pegando carona no anjo de Drummond:


Quando eu nasci um anjo louco muito louco
Veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes


E o anjo estava certo. Ele desafinou um bocado...

Lágrima Nordestina

Eu sempre gostei bastante da música Cajuína, de Caetano Veloso, especialmente a versão com Jorge Mautner.

Mas confesso que não compreendia bem alguns trechos da letra, embora fosse evidente que o sentido geral era de questionamento sobre a vida, feita de “matéria fina” (existirmos, a que será que se destina?). Então certo dia meu cunhado mencionou que a música narrava a visita de Caetano ao pai de um amigo dele, um poeta  que havia se suicidado. Fiquei muito curiosa e na internet encontrei a história detalhada. Torquato Neto, poeta, compositor, jornalista e muitas outras coisas, porém sobretudo um rebelde (no ótimo sentido da palavra), nascido no Piauí, suicidou-se na década de setenta. Ele havia sido um dos mentores do tropicalismo e de diversas agitações culturais no país. Caetano teve a notícia do suicídio quando estava para fazer, junto com Chico Buarque, o show histórico dos dois, hoje disponível em CD. Então ele conta que na ocasião sentiu uma amargura, uma dureza de coração que não permitiu que ele chorasse. Anos depois, Caetano foi a Teresina e encontrou o pai de Torquato. Esteve na casa dele, viu fotos, e chorou, chorou intensamente. E, claro, bebeu cajuína, bebida típica do local. Logo em seguida fez a música. Essa história sempre me emociona. Segue, com detalhes, pelo próprio Caetano:
Numa excursão pelo Brasil com o show Muito, creio, no final dos anos 70, recebi, no hotel em Teresina, a visita de Dr. Eli, o pai de Torquato. Eu já o conhecia pois ele tinha vindo ao Rio umas duas vezes. Mas era a primeira vez que eu o via depois do suicídio de Torquato. Torquato estava, de certa forma , afastado das pessoas todas. Mas eu não o via desde minha chegada de Londres: Dedé e eu morávamos na Bahia e ele, no Rio (com temporadas em Teresina, onde descansava das internações a que se submeteu por instabilidade mental agravada, ao que se diz, pelo álcool). 
Eu não o vira em Londres: ele estivera na Europa mas voltara ao Brasil justo antes de minha chegada a Londres. Assim, estávamos de fato bastante afastados, embora sem ressentimentos ou hostilidades. Eu queria muito bem a ele. Discordava da atitude agressiva que ele adotou contra o Cinema Novo na coluna que escrevia, mas nunca cheguei sequer a dizer-lhe isso. 
No dia em que ele se matou, eu estava recebendo Chico Buarque em Salvador para fazermos aquele show que virou disco famoso. Torquato tinha se aproximado muito de Chico, logo antes do tropicalismo: entre 1966 e 1967. A ponto de estar mais freqüentemente com Chico do que comigo. 
Chico eu recebemos a notícia quando íamos sair para o Teatro Castro Alves. Ficamos abalados e falamos sobre isso. E sobre Torquato ter estado longe e mal. Mas eu não chorei. Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental. 
Quando, anos depois, encontrei Dr. Eli, que sempre foi uma pessoa adorável, parecidíssimo com Torquato, e a quem Torquato amava com grande ternura, essa dureza amarga se desfez. E eu chorei durantes horas, sem parar. Dr. Eli me consolava, carinhosamente. Levou-me à sua casa. D. Salomé, a mãe de Torquato, estava hospitalizada. Então ficamos só ele e eu na casa. Ele não dizia quase nada. Tirou uma rosa-menina do jardim e me deu. Me mostrou as muitas fotografias de Torquato distribuídas pelas paredes da casa. Serviu cajuína para nós dois. E bebemos lentamente. 
Durante todo o tempo eu chorava. Diferentemente do dia da morte de Torquato, eu não estava triste nem amargo. Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Eli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei. No dia seguinte, já na próxima cidade da excursão, escrevi Cajuína."