domingo, 19 de dezembro de 2010

Então é natal

E Simone te persegue nos supermercados, padarias e shoppings cantando com aquela voz horrorosa, te fazendo lembrar não da morte de Jesus Cristo, e sim dos inúmeros assassinatos de músicas cometidos por intérpretes brasileiros e suas infames versões. Você tem vontade de mandar uma carta pra ela explicando que se o "nataaaalll é a festa cristãããããã", ficar mencionando mantras Hare Krishna na música não tem nada a ver. Ao diabo Simone com seu "Harehama", e também com "Hiroshima e Nagasaki". 

A leve impressão de que já vou tarde

Guia musical - nacional - para o fim de um relacionamento

Existe um grande preconceito com o que se chama de "brega", seja o gênero musical em si, sejam as músicas melosas, que são adjetivadas de modo pejorativo. Porém muitas músicas são classificadas como bregas apenas porque falam do sentimento de modo simples, sem muitos refinamentos, e levam o sofrimento às últimas conseqüências. E a verdade é que algumas são muito bonitas, e embalam o choro como poucas:

Felicidade

“Ya no seré feliz,
tal vez no importa,
Hay tantas otras cosas en la vida.”

(Jorge Luis Borges)

The joke was on me

(guia musical para o fim de um relacionamento)

As músicas definitivamente fazem parte da vida, de um modo muito especial e marcante. Algumas lembram a infância, outros são a cara de algum amigo ou amiga. Casais costumam ter a sua música. E algumas marcam indelevelmente o fim dos relacionamentos.
Todo final é doloroso. E a duração desse processo vai depender de uma série de fatores: a sua idade, a sua experiência com a própria dor, o nível de desgaste da relação, os motivos pelos quais ela chegou ao fim e, claro, o quanto você gostava dele ou dela. Com o tempo você vai aprendendo a respeitar cada fase, e se não tiver tanto medo assim da solidão e de si mesmo, vai aprender quase que a contemplar o luto. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Revelação

A porta está aberta
como se hoje fosse infância
e as coisas não guardassem pensamentos
forma de nós nelas escritas.

A porta está aberta. Que sentido
tem o que é original e puro?
Para além do que é humano o ser se integra
e a porta fica aberta. Inutilmente.

(Orides Fontela)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Pequena crônica de um pôr-do-sol

E se a beleza te alcança inesperadamente, te pega, te sacode, te tira do sério e te leva para dançar? E se ela te atropela numa esquina vazia, na entrada de um beco estreito, numa tarde sem graça, numa vida momentaneamente vivida em sephia
Eu conhecia cada grão de areia que fazia cócegas nos meus pés e entrava pelas  unhas. Praia da minha infância, caminho mil vezes percorrido. Ao redor, o mesmo mar, as casas de sempre, as pequenas ruas de terra batida cheias de cocos secos e latinhas de cerveja e , como era começo de janeiro, garrafas vazias de cidra cereser. 

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Detalhes nem tão pequenos assim

No dia 10 de dezembro haverá show de Roberto Carlos para marcar a inauguração do teatro Riachuelo aqui em Natal. Ingenuamente eu pensava em levar a minha mãe e o meu  pai. Mas como é mesmo aquela música...?

Quem espera que a vida 
Seja feita de ilusão 
Pode até ficar maluco

Pois é. Foi muita ilusão.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Elogio da inutilidade

Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. (...)  Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas. À duração de existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.
(Clarice Lispector)

Crianças adoram coisas inúteis. Brincar, gastar o tempo à toa. São horas correndo para lá e para cá, horas ninando bonecas, ou simplesmente cantarolando uma musiquinha enquanto se balançam numa rede ou num pneu velho.  Ouvem “estorinhas” dos pais pelo mero prazer de ouvir; algumas até escrevem sua própria estórias, não para vender livros, mas para se divertir. Quando aprendem a ler, começam a soletrar o que vêem pela frente: placas, letreiros. O prazer de saber, de descobrir. Depois começam a ler gibis e livros. Não lêem para aprender; lêem para mergulhar na história. Mas à medida que vão crescendo, o utilitarismo vai dominando suas vidas. Não brincam mais; lêem quando precisam estudar; estudam para passar de ano; entram na universidade pensando em se formar, e se formam pensando em trabalhar. Já trabalhando, passam a ouvir música apenas no caminho para o trabalho, enquanto enfrentam um ônibus lotado ou um trânsito estagnado. Casam para constituir família, ou para driblar a solidão; lutam para manter o casamento; vão morar nas suas casas ou apartamentos de "arquitetura funcional"; controlam com rigor o próprio tempo; desdobram-se para alcançar metas na vida profissional e também na pessoal. Rezam para ter o conforto de uma outra vida; e sempre se esforçam para acreditar que tudo isso tem um sentido.

Certos autores

Eu adoro ler, desde sempre, e no decorrer dos anos fui desenvolvendo uma ligação especial com os autores. Com alguns tenho uma relação carinhosa: é o caso de Mario Quintana, Cecília Meireles, Garcia Márquez, Thiago de Mello. Com outros tenho certa reverência: Drummond, João Cabral de Melo Neto, Borges. E existem aqueles que dizem exatamente o que eu queria dizer, mas não tenho o talento nem a expressividade para tanto: Clarice Lispector, Albert Camus. Mas com uns poucos acontece uma espécie de fenômeno: pura paixão. Não dá pra explicar. É um escritor cuja técnica eu admiro; gosto racionalmente dos livros, mas não é só isso. Surge uma “química”, que vai além da literatura. Vem uma curiosidade imensa pra conhecer a vida dele e eu passo por aquela fase tipicamente apaixonada: de pensar nele, sonhar com ele e falar sobre ele pra todo mundo (é eu fico chata, fico sem outros assuntos). Com Paulo Leminski foi assim. Eu estava tão conectada com a biografia dele (O bandido que sabia latim, de Toninho Vaz) que passei um fim de semana inteiro só lendo, não conseguia fazer outra coisa e até faltei no meu curso de yoga, porque paixão não tem nada a ver com equilíbrio, concentração e relaxamento. Minha psicóloga chegou a perguntar se eu havia me dado conta de que estava APAIXONADA por ele!!! Vale ressaltar que isso não foi propriamente um problema doméstico, visto que Leminski morreu em 1989, e além disso ele não gostava muito de tomar banho nem escovar os dentes (eca), então não se tratou de um caso extraconjugal!!! Mas que fiquei apaixonada, isso fiquei. 
Pois aconteceu de novo. Eu me apaixonei novamente. O nome dele é Reinaldo Arenas. Poeta cubano. Homossexual, morreu em 1990 (eheh, meu marido tem uma sorte...). Já publiquei duas poesias dele aqui.  Mas o que me atraiu tanto em Arenas?
Junto com ele, conheci outros nove poetas cubanos. No entanto a poesia dele tinha algo de tremendamente doloroso, temperado com muita ironia e com uma resistência que me inundou o coração. Alguma coisa dizia que ele era bastante especial. 
Então descobri que ele escreveu, pouco antes de morrer, uma autobiografia intitulada Antes que anothezca. E essa autobiografia virou um filme chamado Before Night Falls. Quem faz o papel do poeta é Javier Bardem, como sempre perfeito (vale uma observação: também sou meio apaixonada por Bardem). E o filme é lindo, e mostra um lado obscuro do governo de Fidel Castro. Arenas foi duramente perseguido, por ser poeta (sim, isso mesmo) e por ser homossexual. Esteve preso mas finalmente conseguiu sair do país e se exilou nos Estados Unidos. Então depois de ver o filme entendi o que, antes mesmo de sabê-lo, me encantou tanto nesse cubano: ele tinha um peito carregado de emoção, de resistência, de exílio e de lembranças. Uma vida pulsante. Um menino “desagradável”, que quis viver do seu jeito e não se rendeu jamais:

Sou esse menino desagradável,
sem dúvida inoportuno,
de cara redonda e suja,
que fica nos faróis,
onde as grandes damas tão bem iluminadas,
ou onde as meninas que parecem levitar,
projetam o insulto de suas caras redondas e sujas.

Sou uma criança solitária,
que o insulta como uma criança solitária,
e o avisa:
se por hipocrisia você tocar na minha cabeça,
aproveitarei a chance para roubar-lhe a carteira.

Sou aquela criança de sempre,
que provoca terror,
por iminente lepra,
iminentes pulgas, ofensas,
demônios e crime iminente.

Sou aquela criança repugnante,
que improvisa uma cama de papelão
E espera, na certeza,
que você me acompanhará.

(Reinaldo Arenas)


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Uma mulher e dez segredos

1) Fui grande admiradora de programas toscos na TV. Adorava o cine trash, na Band (e ainda hoje lembro do filme “elevador assassino” cada vez que entro em um elevador). Já adulta, via bastante o programa do Chaves e não perdia um capítulo da novela “Betty, a feia” (a original, mexicana). E numa fase muito estranha da minha vida eu gostava de assistir a uma novela das seis só pra escutar o pagodeiro Belo (aquele mesmo, que foi preso) cantando “Mel... sua boca tem o mel, e melhor sabor não há, que loucura  te beijar”. AAAAAAArgh!

2) Sou um pouco, digamos, inconstante com atividades físicas. Já pratiquei natação (e nunca aprendi a nadar), hidroginástica, musculação (em muitas academias da cidade, e nunca consegui permanecer em nenhuma), caminhadas, tai chi chuan, dança de salão, dança do ventre, dança de rua, dança flamenca (e não sei dançar porra nenhuma) e hatha yoga. Hoje pratico Ashtanga yoga e comecei recentemente no Pilates. 

3) Sou louca por terapias, tratamentos alternativos, "pajelanças" e massagens. Já passei por seis psicólogos (na verdade, com dois deles tive uma única consulta) e alguns curandeiros. Amo florais, chás, "garrafadas" e remedinhos caseiros. Além disso, já fiz curso de massagem ayuvédica, de meditação, de formação em hatha yoga (esse durou um ano, teórico e prático) e de programação neurolinguística.

4) É, eu já era bem grandinha quando comprei um CD de Sandy e Júnior.  

5) Sei cantar muitas músicas bregas, mas aquele bregão mesmo, tipo essa aqui: No hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça eu via, você sofrendo a sorrir. Mas seu sorriso aos poucos se desfazendo, então vi você morrendo, sem poder me despedir!!

6) Desde sempre adoro livros. Como já tinha lido tudo que existia lá em casa e na biblioteca da minha escola, saía pedindo emprestado na vizinhança, motivo pelo qual li muito Sidney Sheldon e também aquela coleção Sabrina, Julia, Bianca. Então eu sei de uma quantidade razoável de eufemismos para os órgãos sexuais masculinos e femininos.  

7) Já tive o cabelo cortado à moda de chitãozinho e chororó; aquele franjão horroroso, até a metade da cabeça, e os fiozinhos atrás. Medooooo!

8) Beber e ficar lembrando daquele amor não correspondido, do romance terminado, isso é clássico. Mas na primeira vez em que bebi e fiquei “alta” não pensei em nenhum amor. Fiquei na fossa mesmo por causa do fim de uma amizade de infância. 

9) Quando eu era adolescente, achava que minha voz era idêntica à de Paula Toller, a vocalista do Kid Abelha, principalmente cantando no banheiro. Tudo bem que ela era meio desafinada, mas quem se importava? Para mim a voz dela era linda. Também ficava lendo aquelas matérias na “capricho”, das modelos dizendo que eram bem feinhas quando foram “descobertas” e depois ficaram lindas. Então eu achava que um dia ia ser descoberta...iria "desabrochar" e virar uma mulher linda ou iria ser cantora. É, não aconteceu. Nem uma coisa nem outra.  

10) Sou uma pessoa fundamentalmente atrapalhada. Esbarro nos móveis, esqueço de pagar a conta do telefone, perco tudo, procuro os óculos com eles no rosto, esqueço onde guardei as coisas e caio bastante; já sofri uma queda cinematográfica nas escadarias do cinemax (foi pipoca pra todo lado) e o detalhe: tinha ido assistir a uma comédia. A trilha sonora desse momentos é “conspiração internacional”, por Leoni:



Obs: Essa postagem foi sugerida por Nira; a idéia é listar dez segredos "confessáveis"

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sobre brincar e viver

Rir é uma das melhores coisas da vida, mas parece que às vezes entramos em um ciclo de pressão, responsabilidades, exigências e  tristeza que nos retira temporariamente essa capacidade. Eu mesma às vezes fico tão séria, imprimo tanta gravidade às coisas, que esqueço que quase nada é tão importante quanto parece. 
Quando somos crianças, rir é bem mais fácil. Porque nessa fase, brincar é um ato natural, e a brincadeira é mãe do riso. Mas à medida que crescemos vamos também esquecendo o que significa brincar. 
Eu não gostava muito de ninar bonecas, preferia cortar o cabelo delas (houve uma época em que pensava em ser cabeleireira). Também gostava de maquiá-las, e meu sonho de consumo era uma que tinha só a cabeça e a brincadeira consistia em pintar o rosto todo. Adorava, também, trocar a roupa delas, mesmo que a roupa "nova" fosse um paninho qualquer e não caísse tão bem. Enfim, eu não me conformava com o brinquedo original. No fim das contas, até onde me lembro minhas bonecas eram sempre meio sujas, mutiladas, de cabelo curto...
Hoje, adulta, muitas vezes tenho o desejo de, de vez em quando, simplesmente parar tudo, repensar, desfazer, reconstruir. Fico pensando que esse desejo pode ser uma continuação da minha vocação para cabeleireira de bonecas. Minha insubordinação íntima com certas regras e convenções da vida pode ter começado no exato momento em que tosei a primeira cabecinha! 

Quebrar o brinquedo
é mais divertido.
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade: mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do espelho

E a vertigem das novas formas
multiplicando a consciência
e a consciência que se cria
em jogos múltiplos e lúcidos
até gerar-se totalmente:
no exercício do jogo
esgotando os níveis do ser.

Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.
(Orides Fontela)

Quebrar o brinquedo, construir novos segredos, tudo isso, evidentemente, é uma metáfora do viver. No fundo, a bela poesia de Orides Fontela diz assim (e eu assino embaixo) : romper as regras é muito mais viver. 

Sobre morar e brincar

Quando eu era pequena, morava em uma casa de primeiro andar, com um quintal enorme. Havia muitas árvores (uma mangueira bem grande, bananeiras, goiabeira, coqueiros...) e também um galinheiro. Já nessa época meu “espírito libertário” se manifestava: eu abria a porta e soltava todas as galinhas, o que deixava minha mãe doida. Depois ela passou a amarrá-las com cordões, as pobrezinhas, e então eu ia escondida com uma faca e cortava esses cordões, e lá iam as galinhas, felizes, leves e soltas. Era uma missão importantíssima para mim, e muito emocionante.
Dentro da casa, a escada que dava acesso ao primeiro andar era um tanto sinistra, meio escura, e fechada por paredes dos dois lados (era uma espécie de corredor-escada). Aí houve uma época em que passava uma novela na TV Globo em que um personagem morria mas continuava vindo se balançar numa daquelas cadeiras de palhinha, que a gente chamava de cadeira-da-vovó. Havia uma cadeira dessas no andar de cima, e sempre que eu ia lá sozinha ela balançava terrivelmente, e eu disparava feito doida escada abaixo, certa de que alguma alma penada estava sentada lá, só me aguardando. Cheguei a sofrer umas quedinhas, mas nada grave. Lembro também que depois de assistir ao filme “Poltergeist – o fenômeno”,  subir sozinha se transformou em ato de suprema coragem. Além disso, passei a ter a nítida sensação de que sob um dos canteiros de plantas lá do quintal havia um cemitério, tal qual acontecia no filme. E assim minha infância foi povoada de cadeiras e redes que balançavam sozinhas, portas que se fechavam sem que ninguém empurrasse, ímpeto libertador de galinhas e um quintal que escondia ossadas de gente morta há muito tempo. 
Todas essas lembranças foram despertadas quando li uma maravilhosa poesia de Mario Quintana, que diz assim:

Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Da mesma forma que o poeta, adoro casas antigas e espaçosas, com algum toque de mistério. Não gosto da idéia dos arquitetos de aproveitar cada mínimo espaço para torná-lo funcional. A funcionalidade total retira a graça. Anula a alma. Não suporto que cada coisa esteja sempre no seu lugar. Há uma parte de mim que clama por um pouco de desordem. Uma casa arrumada demais me dá receio: sinto como se estivesse andando em campo minado. Espaços “inúteis”, uma boa varanda, um lugar para armar uma rede, um cantinho que tenha um ar de displicência. Um quartinho escuro, um corredor assustador. Sombras, possibilidades. 
Porque talvez eu ainda queira brincar. Talvez esse meu jeito de adulta séria e “respeitável” seja um disfarce e  eu ainda seja a criança que morre de medo de fantasmas e adora sonhar.

Oba

Dilma venceu, e meu lado palpiteira em matéria política entra em recesso, mas só até a posse! Agora é  hora de assistir aos pronunciamentos, entrevistas, e sobretudo de registrar as propostas. Estou apostando pra ver. E estou com fé, apostando alto. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Sobre olhinhos infantis e programas sociais

Não vou fazer nenhuma análise sobre os programas sociais criados e/ou intensificados no governo Lula, pois não tenho cacife para tanto. Além disso, existem muitos artigos disponíveis na internet, com dados econômicos, indicativos, estatísticas, enfim. 
Vou apenas contar uma história que me fez refletir  sobre o assunto.
Morei uns anos em Recife, que é a nossa São Paulo nordestina, nossa “cidade grande”. Lá, eu tinha uma faxineira muito espirituosa, de quem gostava bastante. O nome dela era Célia. E um dia Célia me chamou para ir conhecer o filhinho recém-nascido de uma parente/amiga.  Aceitei o convite, e saímos rumo a um bairro muito pobre do Recife, no qual, confesso, não entraria sozinha, sem as orientações e a proteção de Célia. Chegando lá, nos dirigimos a um barraco. A amiga dela estava sentada na cama, com o filhinho ao lado. Ela parecia ter de quarenta e três a quarenta e cinco anos. Mas eu sou capaz de jurar que ela teria apenas entre 32 e 33. Intuição. Porque aprendi que, enquanto algumas pessoas aparentam ser bem mais jovens do que realmente são, outras (e essas a gente conhece também pelo olhar) têm tracejadas no rosto linhas que foram resultado não só da passagem dos anos, mas sobretudo da passagem do sofrimento. Sem os cuidados pós-gestação, ela parecia  ainda ter uns dois meninos na barriga. Falou das dificuldades, mas sem ressentimento. Mencionou a despensa vazia, sem mantimentos, mas estava feliz porque tinha leite e ia garantir a alimentação do bebê com a amamentação. 
E então reparei no bebê. Vi os olhos dele.  Azuis. E bem vivos. Soube que ele havia nascido há oito dias e ainda não tinha nome. 
“Diga aí um nome pra ele”.
Eu? Dizer um nome? Eu, uma estranha, sugerir uma marca que iria acompanhá-lo por toda a vida? Aquela criança ali, com apenas oito dias e com aqueles olhos tão vivos inibiu toda a minha criatividade. Nenhum nome me pareceu bom o suficiente. 
Nesse mesmo momento lembrei que estava prestes a ser tia. Minha irmã tinha acabado de saber o sexo do bebê: seria menino, e antes de nascer já tinha um nome, um quartinho todo arrumado, uma guarda-roupa cheinho e uma tia irremediavelmente apaixonada e coruja. Mas aquela criaturinha, já nascida, não tinha sequer um nome. Durante muito tempo fiquei com a imagem daqueles olhinhos na cabeça, tão ativos, de um lado para o outro, atentos, mas sem ter consciência de nada. Sem suspeitar que ali já havia um destino traçado. Mal nascido, e já sem nome. Já sem esperança. O bebê, claro, não sabia ainda o que era não ter esperança, e como me doeu saber aquilo por ele. 
Naquele momento tive a consciência aguda do que é a verdadeira injustiça social. Como as pessoas podem nascer tão diferentes? Quem pode explicar  porque duas crianças, esse bebê e o meu sobrinho, que não fizeram nada, simplesmente "aconteceram", foram concebidos,  podem desde já ser tão diferentes? Podem ter perspectivas tão diversas? Creio que só haveria explicação se partíssemos para premissas religiosas, que têm seu valor, mas apenas no campo da fé. Racionalmente não dá para entender e muito menos para aceitar. 
E no Brasil são milhões de olhinhos, azuis, negros, castanhos, espertos, sem nome, sem comida no armário. Qual a opção deles? 
Aqui entram os programas sociais. Nosso país ainda tem um longo caminho a percorrer, e existem pessoas que simplesmente não têm como sair do lugar, como sobreviver, sem o apoio de tais programas. Existem pessoas que já nasceram sem o mínimo necessário, que vão crescer subnutridas, que não vão ter estímulo para estudar, que vão tentar ganhar dinheiro nos sinais, e que precisam, sim, de ajuda do governo.
Às vezes é muito fácil para quem é de classe média e teve pais pobres, estudou com alguma dificuldade e, como diz a linguagem comum, “venceu na vida”, dizer que quem quer, vence, que quem tem vontade, tudo alcança. Mas para mim isso é literatura barata de auto-ajuda ou coisa de quem assistiu a muito programa da Xuxa (querer é poder, baixinhos!). Eu mesma não estudei sem algum esforço, não vivi sem dificuldades. Mas é radicalmente diferente o ter alguma coisa do não ter absolutamente nada. 
É impossível que o dono dos olhinhos azuis um dia faça uma universidade, consiga um bom trabalho, saia do bairro miserável em que nasceu e tenha uma vida boa e confortável? Não, não é impossível. Só que se não tiver incentivo, se não tiver ajuda, para isso ele terá que fazer um esforço grande demais, ele terá que ser quase um super herói.  E à medida que a gente vai crescendo, vai deixando de acreditar em super herói, não é mesmo?
Então o Brasil precisa, sim, de programas sociais. Precisa, sim, dar dinheiro aos pobres. Há o risco de desvios? Sim, claro. Há o risco de acomodar quem recebe o dinheiro? Sim, existe. Mas isso é motivo para acabar ou reduzir a extensão desses programas? Não creio.  Em primeiro lugar, o valor que cada pessoa recebe pela inclusão não é nenhuma fortuna; não há o risco de criar marajás com o bolsa-familia, podemos ficar tranqüilos. Em segundo lugar, a possibilidade de ajudar e incentivar quem realmente precisa supera o impacto da acomodação. 
O Brasil é um país injusto, muito mais injusto do que supomos na maior parte do nosso dia, enquanto estamos envolvidos com nosso trabalho, nossas obrigações e nosso lazer. Muito mais injusto do que conseguimos sentir ao ver os noticiários. Só o impacto "ao vivo e a cores" é capaz de mostrar o fosso que existe entre as classes sociais.  E esse fosso foi amenizado com o governo Lula, isso é fato. Não foi resolvido, Lula não salvou a pátria (heróis não freqüentam mais o nosso mundo de adultos, lembram?). Mas ele teve um governo em grande parte voltado para os mais necessitados. Claro que só a assistência não resolve, é preciso avançar. É preciso investir muito mais em educação. Ainda vale aquela antiga máxima de que é melhor ensinar a pescar do que dar o peixe, mas é preciso que o pescador tenha forças para poder lançar a sua isca mais longe, é preciso que ele não seja subnutrido e tenha condição de  puxar o peixe, para não deixar que ele escape. 
E nós, que somos privilegiados, porque tivemos educação formal, porque temos um trabalho, precisamos disso, precisamos que os pobres deixem de ser tão pobres, porque a redução de todos os problemas, inclusive da violência, passa pela melhoria das condições de vida da população. Eu adoraria reencontrar aqueles olhinhos azuis numa biblioteca, numa livraria, ou numa empresa, como vendedor, supervisor, quem sabe professor! Mesmo tendo a certeza de que obviamente não os reconheceria. Mas se o abismo não se retrai, se não lutamos pela sua redução, o risco bem maior é de encontrá-los nas páginas policiais, esbugalhados, ou que Deus me proteja e nos proteja a todos, de encontrá-los em alguma esquina, à espreita, marcados pelo ódio e refletindo a arma na mão.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Obrigada, José Serra

Sou uma pessoa meio antiquada. Nasci na década de 70. Gosto de músicas antigas, de filmes um tanto velhos, tenho hábitos meio arcaicos, tais como preferir uma boa conversa pessoal com os amigos, ao invés de email ou twitter. Então tenho um jeito de pensar e de sentir as coisas também um pouco, vamos dizer assim, ultrapassado. Nesse nosso tempo atual, individualista (e eu diria que até um tanto niilista), fico igual a Cazuza, sentindo falta de uma ideologia para viver, de um sonho no qual possa acreditar. Não suporto a apatia, a falta de motivação. Mas era assim que eu andava ultimamente, no que diz respeito à política.
E aí você me salvou dessa indolência em que eu estava mergulhada, você me mostrou que existe uma razão para lutar e para votar. Você, José Serra. 
No primeiro turno eu estava achando que você e Dilma tinham idéias e projetos muito parecidos. Na verdade, confesso, não havia ainda despertado para a busca de informações, para o acompanhamento mais freqüente das discussões.  Mas nessa campanha do segundo turno, você finalmente disse a que veio. Mostrou que é diferente, e muito. Então muito obrigada por ter mostrado a cara. 
Sua campanha de difamação contra Dilma me fez pesquisar sobre a vida dela. Enxerguei a mentira por trás das alegações lançadas na internet de que ela era ou tinha sido terrorista. Mas não é só isso. Depois de conhecer a biografia de Dilma, a candidata que antes eu via como insípida e até um tanto forjada, hoje enxergo como uma mulher forte, que lutou com paixão e destemor pelas causas nas quais acreditava. As suas táticas sujas, José Serra, envolvendo uma discussão ridícula sobre aborto e posições religiosas me fez perceber o fundamentalismo por trás do seu sorriso, no qual, a propósito, nunca acreditei. Ah, ia esquecendo: obrigada também porque eu andava um pouco cansada e até meio triste (coisa pessoal, sabe?), mas a ridícula e fingida hipocondria em torno do "OVNI" que lhe atingiu na cabeça me fez rir.  
Em um texto anterior, falei de política e de voto de modo um tanto tímido, quase justificando a mim mesma minha decisão de apostar no PT. Mas as suas manobras, a sua campanha suja, as desprezíveis táticas do medo, do terror e da mentira fizeram com que eu me aprofundasse nas informações e na reflexão sobre o quanto o país mudou nesses últimos anos. Obrigada, então, porque agora eu vejo com clareza o quanto de atraso a sua eleição iria representar.
Mas sou sentimental, leonina e apaixonada por tudo em que acredito, por isso meu agradecimento principal é por você por ter me livrado do receio de acreditar em Dilma, por ter me trazido de volta o gostinho da “ideologia”. Eu disse anteriormente que hoje não viajaria mais 600 km para votar em Dilma, como viajei para votar em Lula. Na época estava morando provisoriamente em outra cidade, a trabalho, e não havia transferido o título eleitoral. Pois agora voto aqui mesmo, na cidade em que moro. Não preciso viajar, mas a eleição é no meio de um feriadão. Então vou deixar de viajar. Não vou aproveitar o feriado porque QUERO votar. Faço questão, veja só. Voltei a fazer questão! Então muito obrigada, Serra, por ter proporcionado essa sensação de que estou politicamente viva de novo, obrigada porque, graças ao que descobri sobre Dilma (repito, instigada por você!), vou comparecer à urna com alegria, esperança e com o nome dela exposto do lado esquerdo do peito. 


sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A falta que ela nos faz

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem uma séria de livros abordando o que ele chama de “liquidez” do mundo moderno: “Modernidade líquida”, “Tempos líquidos”, “Vida líquida”, “Medo líquido” e “Amor líquido”.
Líquido, todos sabem, é algo que escapa entre os dedos, que flui, escorrega, não se firma, não tem solidez. De todos os livros, li apenas “Amor líquido”. Mas, com a pretensão peculiar a uma nativa do signo de leão, vou falar sobre o que decidi chamar de elegância líquida. 
A idéia de liquidez do amor foi construída pelo sociólogo com base na análise das relações atuais, de modo que a liquidez, em princípio, não seria uma característica imanente. Já quanto à elegância, eu diria que ela, por sua própria natureza, já é um tanto líquida. Afinal de contas, quem é elegante? Quem usa bolsa Prada? Quem veste Coco Chanel? Quem usa sapatos Louboutin? Quem sabe manejar diferentes talheres  à mesa? A elegância é um jeito de ser, ou um estar? Alguém pode estar elegante hoje, e amanhã não?  Para ser elegante tem que ser inteligente? Elegância se constrói ou, como dizem alguns, vem “do berço”? 
Trata-se de um conceito bastante fluido.  Uma das definições mais interessantes que já encontrei foi no dicionário on line priberam:
1. Gosto delicado no trajar, no falar, no adorno da casa, etc.
2. Graça, airosidade, delicadeza e distinção aliada à simplicidade e clareza.
Vê-se, portanto, que ela não se define por um único critério. Eu que o diga. Já fui empurrada e ignorada por senhoras que tinham cada peça do vestuário de uma marca famosa diferente; já as vi falando em um tom excessivamente alto e ignorando outras pessoas. E já conversei com serventes de pedreiro que demonstraram uma delicadeza ímpar. Mas é claro que também já encontrei senhoras e senhores vestidos com perfeição, e com a graça, a delicadeza e a distinção mencionados no dicionário. Não estou querendo dizer que ter dinheiro já exclui a elegância; digo apenas que não é fator determinante. Do mesmo modo a questão da formação escolar. Convivo com pessoas que não sabem ler, com outras que têm curso superior, outras ainda com pós-graduação. E não é possível estabelecer, de antemão, quem é elegante e quem não é. 
Acredito que se trata de uma característica até certo ponto inata, ou melhor, alcançada por alguns com naturalidade e facilidade. Mas é, também, algo que se pode trabalhar. Semana passada li uma entrevista com a escritora Patrícia Melo, que gosta de inserir nos seus livros reflexões sobre a maldade, e ela disse que a maldade é inerente ao homem, e que ser bom é um exercício, é algo que se conquista. Creio que também a elegância é algo que se conquista. Um dos seus componentes, a simplicidade,  por incrível que pareça, é algo muito difícil de alcançar (Clarice Lispector já disse: “Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho”). A distinção e a clareza também. Se fizermos uma operação matemática podemos ter, se não uma definição, um outro conceito que em muito se aproxima do conceito de elegância. Somando delicadeza com simplicidade e clareza, podemos obter como resultado...a educação. Elegância é algo muito ligado à educação. Não educação como um saber formal, mas como o saber tratar o outro, saber dizer “obrigada”, “com licença”, "por favor", “posso?”, “pois não”. 
Na realidade, toda essa divagação a propósito da elegância começou quando eu estava caminhando  na rua, voltando da minha aulinha de Yoga, e fui parada por uma senhora que vinha num daqueles carros enormes, tão comuns  em Natal. Não entendo muito de carro, mas é impossível não perceber o quanto as pessoas aqui usam uns veículos grandes e chamativos. Como foi dito pelo antropólogo Roberto Damatta, no Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. E se esse carro é grande e potente, então você é o rei.  Então essa senhora me parou para pedir uma informação. Eu estava de tênis, visivelmente vinha de alguma academia ou estava praticando exercício ali mesmo, na rua, e quem vem nesse ritmo não gosta muito de parar. Mas parei. Ela queria saber o endereço de um buffet, que ficava naquela rua. Eu disse que não sabia, mas que deveria ser dali para a frente, porque mais atrás eu assegurava que não existia nenhum.  Ia complementar que poderia ser numa casa dois quarteirões adiante, mas fui cortada por ela própria, que disse um impaciente “ta, tá”, e arrancou.  Será que atraio gente grossa, ou será que é porque eles estão dominando o mundo, em especial esta minha pequena aldeia? Também, quem mandou? Quem mandou ser uma reles e invisível  pedestre? 
E Natal é pródiga em gente assim.  Felizmente escapam algumas pessoas, que sabem ser elegantes,  e viva todas elas, que fazem desta cidade um lugar suportável. 
Termino este texto/devaneio/desabafo cometendo, eu mesma, um ato de profunda deselegância com o maestro Tom Jobim, deturpando a letra de uma música dele para mandar um recado telepático para a motorista nervosinha que me abordou e  que certamente jamais irá ler este texto: “se todos fossem iguais a você...que merda viver!!!”

Joana e o pescador

 Os coqueiros se sucediam, e o pano de fundo era o mar. Da janela do carro, qualquer pessoa que não morasse em cidade litorânea olharia aquele mar. Mas não Joana. Não naquele estado em que se encontrava. Fora tomada. Tomada por um turbilhão de pensamentos, de suposições, de ...de desejo? Não, de desejo não. Não podia ser desejo. Desejo, tesão, não era assim que se sentia. Foi só a surpresa de conhecer uma pessoa diferente das outras com as quais convivia. Uma pessoa com um sorriso tão diferente...ninguém tem tesão por sorriso. Pode haver tesão por um corpo, por uma carícia, mas onde já se viu ter tesão por um sorriso? Como era mesmo aquela música?...ah, lembrou: “sorriso ingênuo e franco de um rapaz moço encantado com vinte anos de amor”. Esse era o sorriso dele.  Teria ele só vinte anos? Talvez vinte e dois, vinte e três no máximo. Ainda por cima isso. Ora, de vinte e oito para vinte e três, cinco anos a menos, é uma diferença considerável para uma mulher namorar um homem. Ah, mas que falta de noção,  quem falou em namorar? Como é que ia catar um pescador do Riacho Doce, periferia de Maceió, e namorar? Trocar um noivo advogado por um pescador!?! Mesmo que cometesse essa insanidade, jamais teria coragem de apresentá-lo às amigas. Tudo bem que elas iriam enlouquecer por aqueles olhos e aqueles músculos, mas certamente diriam que ele só servia para diversão. E pior: o que ela, Joana, iria conversar com o pescador? Sobre quais assuntos discutiriam? Como iria dizer a ele que gosta de Drummond, de Chico Buarque e de cinema francês?  Joana sabia que não existe isso de amor à primeira vista; para existir amor tem que haver afinidade. A coleção de CD´s e de livros tem que combinar. Bom, ao menos era isso que pensava até conhecer o maldito pescador. Mas será que existe neste mundo  um amor puro, desvinculado das afinidades, das condições econômicas, culturais? Existirá um amor dado, pronto? Amor é algo que se sente, ou se constrói, se inventa? Drummond encerra um de seus poemas assim: “a vida, apenas, sem mistificação”. Existirá em algum lugar um amor sem mistificação? E amor precisa ter continuação? Ai, que bobagem, pensou Joana, quantas bobagens cabem nesse percurso até o hotel? Se não tem continuação não é amor, é paixão ou só tesão. Mas peraí. Por que o “só”? Quem inventou essa gradação, dizendo que tesão é o nível mais baixo, depois vem a paixão e por fim, no mais alto degrau, o amor? Quem criou esses conceitos? 
É melhor deixar de devaneios. É preciso ser prática:  esquecer isso de uma vez. Esquecer o sorriso, os braços...braços forjados no trabalho, no remo, são tão diferentes de braços moldados em academia...por que será? 
Joana, decididamente, é melhor você se concentrar em outras coisas. A viagem de volta, por exemplo.  Amanhã, às sete da manhã já deverá estar no aeroporto. É bom combinar com o taxista para vir pegá-la às seis. E então, São Paulo, apartamento, escritório, noivo. À noite irão  sair para jantar, depois dançar, depois...
O solavanco do carro interrompeu os pensamentos. Olhou de lado e viu que a paisagem fora substituída pela portaria do hotel. Joana falou ao taxista, num fluxo só:
- Então o senhor me pega aqui amanhã às seis em ponto. Quero chegar cedinho na praia do Riacho Doce. 


(pequena história imaginada quando o guia turístico em Maceió falava sobre o livro Riacho Doce, de José Lins do Rego – que não li – e da minissérie Riacho Doce – que não assisti. A frase em negrito foi roubada de um amigo!)


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Vozes cubanas

"Vozes" é outro poema do escritor cubano Reinaldo Arenas, que descobri recentemente e achei fantástico.  Fiquei sabendo que existe um filme baseado na sua autobiografia, chamado “Antes do anoitecer” (Before Night Falls), lançado em 2000, e que tem ninguém menos que Javier Bardem (adoro!) no papel do poeta.  Está na lista de filmes que preciso ver!
Vozes
      Nós viemos pelo ar
Nós viemos pelo mar
Nós chegamos amarrados ao pneu de um automóvel
Nós chegamos presos à roda de um avião
Nós saímos conjurando tubarões e guarda-costas
Nós saímos tradeando um túnel no ar
Nos saímos agarrados à cauda de um cometa
Nós chegamos a nado, vomitando bílis,
Soltando os bofes,
Os ossos ao sol, desidratados,
Descarnado o coração.
      Sim, sem dúvida somos os mais ditosos
                                                            - os afortunados.
Os demais jazem para sempre sob o mar
Ou condenam a nossa fuga
Enquanto secreta e desesperadamente desejam partir. 

Um amor

Um fim de tarde. Um sopro, uma brisa. Um beijo nervoso, mas ao mesmo tempo confiante. Um amor. 
Um amor que tirasse não apenas o fôlego, mas sobretudo o medo. Que aumentasse a percepção: uma rosa não é só uma rosa, é um labirinto vermelho-escuro, um vermelho que não é só vermelho, tem mil cores em si. Andar pisando em rosas. 
Um amor que não pensasse em continuação, mas sim em eternidade. Que fosse capaz de se dissipar com o vento, o vento que dissipa uma tempestade. Mas que traz um sol cuja beleza é feita da lembrança da chuva que passou.
Um amor que fizesse esquecer. Esquecer que a vida é complicada e que os amores não resistem à rotina. Que fizesse acreditar em outras vidas e dispensar a explicação cientifica sobre o déjà vu (não, não é uma falha no cérebro; é algo que você já viveu em alguma outra dimensão). 
Que desse a sensação de que a vida é uma criança que se pode acariciar, que se pode tomar nos braços; que desse tanta coragem, 
coragem até mesmo para enfrentar o fim do amor.  

(2006)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Um coração antes cheio de amor, hoje deserto (ou, menos poeticamente falando, por que, apesar de tudo, vou votar em Dilma).

Não, eu não esqueci dos escândalos do mensalão, Renan Calheiros etc, para citar dois dos mais recentes. Mas também lembro do Proer, do caixa 02 para reeleição de Fernando Henrique, da Sudene e de tantos outros escândalos da era FHC. Lembro ainda que nessa época  tive dengue. 
Uma das grandes diferenças é que o PSDB contava com Geraldo Brindeiro e depois com Gilmar Mendes, que ganharam o curioso apelido de “engavetadores-gerais” da república; ao contrário do que ocorre hoje, naquele período todas as falcatruas eram abafadas. Além disso, os tucanos sempre contaram com uma mídia bastante favorável, desde a TV até uma revista “clássica” e conhecida inclusive por muitos brasileiros que não sabem ler. Vale lembrar também que quando FHC assumiu a presidência, em 1995, foi logo extinguindo, por prevenção, a  Comissão Especial de Investigação, instituída na época de Itamar Franco e que tinha como objetivo combater a corrupção.
Isso não justifica os desmandos do PT, mas mostra que a realidade não é tão simples, e não dá mais para separar sonhadoramente os bandidos dos mocinhos; a corrupção não foi criação do PT. O impacto de tudo que acontece é maior quando se trata do PT porque esse foi um partido que durante anos se arvorou no papel de defensor absoluto da ética, discurso que se revelou totalmente furado. Fui uma utópica defensora do PT durante alguns anos; hoje não o defendo mais com a confiança de antes, mas vejo que é preciso adotar uma espécie de política de redução de danos: entre o projeto político do PT e de Dilma e o do PSDB e Serra, qual devo escolher? Em qual deles posso acreditar ao menos um pouco?
Não é tarefa fácil. Dilma é antipática e sua candidatura no início me pareceu um tanto forçada. Já que Palocci, Dirceu e companhia ltda estavam queimados, era preciso encontrar um nome ainda intacto, e Dilma foi a saída pela tangente. Também não aprecio o vice, senhor Michel Temer, do PMDB, que na verdade já foi um grande articulador da campanha de FHC. Opa, mas como assim? Assim mesmo. Ele era do lado de lá. Pra mim, a escolha de Michel Temer foi uma costura política muito mal feita. Lula também não é mais “o cara”. Não o perdôo pela omissão, pelo sorriso ao lado de Renan Calheiros, pela defesa de Sarney, dentre tantas outras coisas. 
Mas, apesar de tudo isso, decidi votar em Dilma neste segundo turno. 
Porque Serra, com sua cruzada religiosa e familiar, não dá. Isso é baixaria e é chamar o eleitor de idiota. Porque, falando em vice, Serra tampouco se sai melhor (quem era mesmo Índio da Costa? Eu não conhecia, nunca tinha ouvido falar. É um rapazinho falante e conservador, que acha totalmente sem noção comparar a inocente “cervejinha”, que mata milhões ao volante, com outras drogas. Que adoraria chegar aos locais prendendo todo mundo). Porque Serrinha não é tão ficha limpa assim. Ele foi condenado por improbidade administrativa, mas seu amigo Gilmar Mendes (sempre ele) conseguiu arquivar o processo. Exatamente a mesma coisa que aconteceu com outro ex-ministro de FHC, Ronaldo Sardenberg. Porque Serra tem consciência de que o governo do PSDB foi ruim para o país, tanto que buscou durante a campanha dar a idéia de continuidade e silenciou sobre os “grandes feitos” de Fernando Henrique. Porque o governo dos tucanos é bastante favorável às privatizações. Porque FHC quis acabar com as escolas técnicas (e Serra, agora, em seu programa de campanha, incluiu a ampliação dessas escolas). Porque os tucanos sonhavam extinguir a justiça do trabalho (e com isso institucionalizar a servidão). Porque na era FHC grassou a flexibilização das relações de trabalho, nome bonito e “cool” para o que eu chamo de precarização. Porque Serra não convence quando fala em diminuir a terceirização (afirmação dele no último debate, na Band). Porque no governo FHC muitas causas sociais foram tratadas como questão de polícia, bem ao gosto do Sr. Índio da Costa.  
É engraçado como partidários de Serra desqualificam o voto de pessoas que moram no nordeste e ganham o bolsa-familia, quando o próprio Serra é favorável em suas propostas à continuação do que se chama jocosamente de “bolsa-esmola”. Aliás, Serra reivindica a paternidade do benefício para o governo FHC. Quanto ao governo Lula, que Dilma promete continuar, os avanços sociais são inegáveis. Veja-se o que diz Ivo Patarra, no livro "O chefe" em que espinafra Lula e conta detalhes do mensalão:
Da mesma forma que não se pode deixar de reconhecer os avanços das políticas sociais responsáveis por tirar milhões de brasileiros da pobreza nos dois governos do presidente Lula, não há como minimizar o expressivo crescimento econômico e o incremento da inserção do Brasil no cenário mundial, também registrados no período.
Isso foi dito por um oposicionista ferrenho, um anti-Lula! 
Serra, no debate da Band, mencionou a queda de 70% dos índices de homicídio em São Paulo, mas esqueceu de dizer que isso se deve em grande parte à geração de empregos e à redução do fluxo migratório, o nosso velho e conhecido "êxodo rural”. São Paulo, tradicional destino dos nordestinos sem esperança, não é mais a mesma, já não atrai tanto assim. A violência nas capitais se reduziu porque agora há perspectivas no interior. 
Eu lamento bastante que o PT tenha destruído meus sonhos utópicos; já viajei quase 600 km para votar em Lula, vestida de vermelho, carregando uma mala vermelha e um coração cheio de amor. Hoje não faria isso, não faria esse sacrifício pra votar em Dilma. O coração está deserto. Mas o cérebro precisa funcionar. Como toda brasileira, tenho, sim, memória curta, por isso há dias ando pesquisando, lendo, prestando atenção, relembrando. E criando forças para finalmente poder dizer em alto e bom som: vou votar em Dilma. 
E afinal de contas vamos combinar: Dilma é antipática, mas Serra é um chato. Foi ele quem sancionou a lei anti fumo em São Paulo, que proíbe o cidadão de fumar em qualquer ambiente fechado e estimula o denuncismo. Isso me lembra situações que não vivi, mas sobre as quais li bastante. A  sentença do Juiz da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, que chegou a suspender os efeitos dessa lei, fala um pouco sobre isso:
"...Ressuscita-se a figura do “guarda de quarteirão”, característica dos regimes totalitários e de triste memória para a maioria de nós: sob invocação dessa famigerada lei, em todos os lugares (inclusive áreas de condomínio e sanitários) se encontram afixadas placas enormes não apenas informando a proibição, mas estimulando o denuncismo por telefonema gratuito; todas as pessoas, “amigos” e inimigos, sentem-se guardiães da moralidade e no dever de denunciar o fumante; as que detêm algum poder “ampliam” a restrição, a seu bel prazer, “por conta da lei”."
Como alguém com esse nível de conservadorismo, com posições falsamente religiosas sobre aborto, pode tratar abertamente de um dos mais sérios problemas de saúde pública do país, que é o uso de drogas, em especial o crack?
Não ao conservadorismo, à cruzada pseudo-religiosa, ao engavetamento, à precarização das relações de trabalho. Sim à esperança, um tanto estraçalhada, porém ainda existente, de um país mais  justo. 



PS: título inspirado em Fagner e Zeca Baleiro: "Meu coração vive cheio de amor e deserto..."

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Consumidor rima com sofredor

É triste constatar que no Brasil as coisas só se resolvem no grito. O consumidor é continuamente enganado, menosprezado e ultrajado. E só consegue reparação quando dá uma de doido ou quando entra na justiça. 
Na minha trajetória “consumerista” me deparei com os mais variados absurdos. Tá, eu tenho cara de idiota. Tá, eu tenho uma boa-fé que beira a lerdeza.  E tá, tenho o hábito de “deixar pra lá”, por não querer me envolver em confusão, não querer perder tempo em audiência na justiça etc etc etc. Por isso talvez eu até mereça sofrer o que sofri. Mas vou contar alguns episódios mostrando como consegui resolver problemas, ou ao menos consegui atenção, no grito. 
1) Em Recife, eu cheguei às 12h00min na rodoviária para pegar um ônibus que iria sair às 14h00min. Passei uma hora e vinte minutos na fila da empresa de ônibus para comprar a passagem. Quando comprei, foi uma catarse, aquela felicidade! Mas quando me dirigi ao embarque, uns dez minutos depois, vi que o bilhete tinha a data errada, era para dali a cinco dias. Voltei ao guichê para corrigir, e a resposta: não havia mais vagas no ônibus das 14h00min. Claro que fiquei transtornada. Eles disseram que eu tinha a obrigação de conferir os dados da passagem. Eu disse que o vendedor tinha a obrigação de me vender corretamente, conforme as especificações que eu tinha dado, sobretudo depois do martírio da fila. O atendente fez um muxoxo e me deu as costas. Simples assim. 
Então eu peguei o chaveiro da minha casa (de metal) e comecei a bater no vidro, de modo forte e ritmado. Logo ele voltou perguntando o que eu estava fazendo, preocupado com o vidro, com medo de que eu o quebrasse, e eu disse que só iria parar de bater quando fosse atendida. Fui chamada para dentro da cabine e com o mesmo desdém ele me disse que sentia muito, mas a culpa era minha e eu não tinha mais como viajar naquele dia. Eu disse que entendia, mas que era o seguinte:  dali eu só saía ou para aquele ônibus, em direção a Natal, às 14:00, ou para a delegacia, porque se eles não me colocassem no ônibus eu iria quebrar tudo ali dentro. E comecei a chutar mesas e cadeiras. O resultado? Rapidinho eles conseguiram a vaga para a “louca” e eu embarquei, feliz e satisfeita;
2) Ano passado eu e meu marido voltávamos de uma viagem. Por causa de um atraso no primeiro vôo, perdemos a conexão. Eles nos colocaram para voar dez horas mais do que o programado, e quando desembarcarmos, cadê as malas? Não apareceram. Então garantiram que seriam entregues em casa, que ficássemos despreocupados. Dois dias depois chegam as benditas malas, plastificadas (coisa que não tínhamos feito), arrumadinhas, mas ao abrir constatei que os cadeados haviam sido arrombados e todos os presentes que havíamos trazido para a família tinham sido levados, além de um casaco lindo do meu marido e uma bolsa minha. Comunicamos à empresa aérea, tiramos fotos e pedimos o ressarcimento. No início, da parte deles, indiferença total. Não estavam nem aí. Então eu resolvi partir para o grito. Escrevi um e-mail “entendido”, alertando para a aplicação do código de defesa do consumidor, com liberdade do juiz para fixar o valor da indenização,  e ao mesmo tempo já ajuizei uma ação, pedindo, além do ressarcimento do prejuízo, indenização por danos morais. E o que fez a Companhia aérea? Ora, um lindo pedido de desculpas pelo transtorno, e ofereceu o pagamento integral e imediato das despesas, sem sequer pedir para ver as notas fiscais do que havíamos comprado. Lindo isso. Porque eles perceberam que se continuassem com a mesma atitude iriam pagar muito mais de indenização. 
3) Como 90% das pessoas, já caí nos contos do vigário dos planos ma-ra-vi-lho-sos de celular, de um milhão de minutos, um paraíso. Só que não informaram que havia uma carência. Tentei cancelar o plano, não podia, resolvi cancelar a linha. Passei umas três horas tentando cancelar, e quase fui à loucura. Só me atenderam quando comecei a xingar desesperadamente e a dizer que estava gravando a conversa e iria entrar na justiça.
4) Tive assinaturas de revistas renovadas automaticamente no meu cartão de crédito, sem minha autorização.  Cancelei os cartões. 
5) Triturei um cartão de crédito, mordi, dancei e fiz sapateado em cima dele por causa de uma raiva que eu tive, potencializada por um péssimo atendimento eletrônico que não se completava nunca. 
6) Comprei um carro zero quilômetro, porque odeio oficina, odeio conserto, odeio perder tempo com essas coisas, odeio aquela conversa de “rebimboca da parafuseta”, e com carro zero você teoricamente passa um tempo só tendo o trabalho de abastecer, calibrar pneu e fazer as revisões periódicas. Nada mais. Mas o maldito carro, da KIA MOTORS, veio com diversos problemas de fábrica. E a cada ida à concessionária os defeitos pioravam e surgiam outros novos. Por último apareceu um rangido insuportável nos bancos. Então de ontem pra hoje surtei. Enchi o carro de placas do tipo “Não compre carro desta marca. É mais barulhento do que carroça”. “Não compre. Este carro é pura enganação".  Bloqueei a entrada da concessionária  e disse que só saía de lá com o gerente. Ele veio, fomos dar um “passeio” no carro, filmei tudo, inclusive ele dizendo que eu estava “coberta de razão”, que não tinha condição um carro novo apresentar tantos problemas. Num instante eles me arranjaram outro carro pra rodar e ligaram para pedir uma peça que precisava ser trocada. Só assim, com grito, placas e demonstração de estresse no limite,  eles me deram alguma atenção. 
Esses são apenas alguns exemplos, mas houve muito mais...
Apesar de tudo, hoje sou uma pessoa mais feliz. Só tenho um celular, cancelei cartões de crédito, não faço mais assinatura de revista, sou mais livre assim. E ainda me divirto com as ligações e as perguntas do pessoal do telemarketing. Quando fui cancelar uma linha de celular este ano, a atendente perguntou o porquê, aí eu respondi que eram motivos pessoais. E ela: entendo...mas a Sra. tem essa linha há tanto tempo, não quer ficar com ela mudando o plano? Respondi que não dava, porque era bióloga e estava indo estudar o comportamento amoroso das formigas na Nova Zelândia. E ela: ah, entendo...mas não quer deixar o celular com alguém da família, ou amigo, pra quando voltar?
- ah, moça, não diga isso que assim me machuca. Minha família morreu toda num acidente de avião e meu marido me traiu com minhas três melhores amigas. Não tenho mais ninguém no Brasil, ninguém nesse mundo!
Tadinha da atendente, assim ela teve que cancelar. 
Agora ando doida pra receber uma daquelas ligações oferecendo cartão ou empréstimo, porque vou dizer que não quero porque minha religião não permite, e vou começar a pregar para a atendente, dizendo que dinheiro é coisa do diabo e tentando convertê-la a uma vida mais simples, largando esse emprego que fica fomentando as coisas do capeta!  

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma pausa de mil compassos

Paulinho da Viola, numa de suas belas canções, diz que quer uma pausa de mil compassos, porque vai fazer um “samba sobre o infinito”. Sempre que ouço essa música penso nos períodos sabáticos. A enorme pausa para investir em interesses pessoais, sair totalmente da rotina, fazer uma reavaliação geral. Acredito que isso é essencial, e um dia ainda vou fazer algo do tipo. Não são simples férias, não dá pra reavaliar sua vida em 30 dias. É algo mais profundo e com duração maior; é como sair de você, da pessoa que você está acostumado a ser, transportar-se para outra realidade e, assim, desvinculado dos costumeiros padrões, descobrir novas aptidões, recuperar sonhos, enfim, conhecer-se um pouco mais. Não é à toa que Paulinho da Viola quer essa pausa tão grande: para fazer um samba sobre o infinito, ele precisa de tempo e de paz. 
Um dia ainda saio pelo mundo para ter essa pausa. Dido tem uma música bem legal que também fala um pouco sobre isso, sobre essa sensação de “não-pertencimento” que vem de vez em quando, e essa necessidade de reencontro: life for rent. Seria muito interessante  poder “alugar” a vida, deixar um substituto trabalhando em seu lugar, cumprindo a rotina, encarando o cansaço, reclamando da falta de tempo.... E, claro, depois voltar e encontrar tudo certinho!
Enquanto meu período sabático não vem, fico muito feliz em tirar uma semana de férias, a partir de amanhã!
Não vai dar pra fazer um samba sobre o infinito, mas já está valendo!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A dolorosa poesia cubana

Já revelei minha atração por Cuba no texto sobre os dois Pablos da minha vida. Eu tinha a impressão de que o regime era algo defendido pelos cubanos, exceto por uns poucos insatisfeitos oposicionistas. Não havia entrevista ou relato de Yoani Sanchez que me fizesse mudar de idéia. Eu tinha argumentos para rebater os dela, e pra mim ela era apenas uma revoltadinha. Eu achava que uma das maiores conquistas do povo cubano era a resistência ao apelo exacerbado do consumismo, a fidelidade aos valores, a persistência da ideologia. 
Até que li “Viagem ao crepúsculo”, de Samarone Lima. Não, não é um livro sobre vampiros. É o relato em primeira pessoa de uma viagem que ele fez a Cuba. Ele não foi para a Havana dos belos hotéis, do rum de primeira qualidade, da boa música. Não foi para a Havana dos turistas. Ficou hospedado clandestinamente na casa de cubanos, circulou pelo país integrado ao cotidiano deles. E o que mostrou através do livro  foi a mais pura revolta dos cubanos. Revolta por faltarem alimentos, por faltar qualquer mínimo conforto, faltar a tão falada saúde, a educação e, sobretudo, por faltar a liberdade. O livro conta a história de um povo que está farto, que não agüenta mais. O tratamento dispensado na ilha aos estrangeiros – turistas – é totalmente diferente daquele dispensado aos cubanos, que muitas vezes sequer podem entrar em hotéis e outros lugares reservados, que compõem uma espécie de zona proibida. Há duas moedas, o peso cubano e o peso “convertible” ou CUC, que vale muito mais do que o primeiro. Um dos cubanos que o autor conheceu  resume a história sobre a convivência entre as duas moedas assim: Há coisas em Cuba que não se explicam. São coisas que só acontecem aqui, é o que sobrou do que eles chamam de revolução. Além disso, o livro mostra a corrupção, o drible às cotas e às normas em geral quando se tem algum dinheiro.
Pois bem. Esse livro plantou em mim a semente da desilusão. Recentemente li uma bela crônica de outro escritor, retratando situações análogas. Mas nada me pesou tanto quanto um livro de poesia cubana que comecei a ler hoje. Os relatos são pungentes. O que vi nas poesias foi algo parecido com um cansaço, um cansaço extremo, e uma melancolia sem fim. Morte, brutalidade, desassossego, às vezes ironia, lamentações. Por isso criei um tópico só para essas poesias, pois à medida do possível quero transcrever as minhas preferidas.
Começo com uma de Reinaldo Arenas. Consta no perfil do autor que ele foi rotulado de “contra-revolucionário”, tendo início uma perseguição implacável, em razão da sua oposição ao regime e também pelo fato de ser homossexual. Esteve preso, mas conseguiu asilo nos EUA. Morreu em 1990. 

QUANDO LHE DISSERAM

      Quando lhe disseram que estava vigiado
que à noite quando ele saía
alguém com uma chave-mestra entrava na habitação
e remexia nos frascos de aspirina
e nos consabidos, indiferentes, livros;
      quando lhe disseram que dezenas de polícias
em sua honra se afadigavam,
que tinham conseguido subornar os seus familiares mais
       chegados,
que os seus amigos íntimos
ocultavam atrás dos testículos pequenos livretes
onde anotavam os seus silêncios e vírgulas,
                                                         não sentiu medo,
mas sim uma certa sensação de enfado
que instantaneamente soube controlar:
Não vão conseguir, prometeu a si mesmo, que me considere 
       importante.