quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sobre morar e brincar

Quando eu era pequena, morava em uma casa de primeiro andar, com um quintal enorme. Havia muitas árvores (uma mangueira bem grande, bananeiras, goiabeira, coqueiros...) e também um galinheiro. Já nessa época meu “espírito libertário” se manifestava: eu abria a porta e soltava todas as galinhas, o que deixava minha mãe doida. Depois ela passou a amarrá-las com cordões, as pobrezinhas, e então eu ia escondida com uma faca e cortava esses cordões, e lá iam as galinhas, felizes, leves e soltas. Era uma missão importantíssima para mim, e muito emocionante.
Dentro da casa, a escada que dava acesso ao primeiro andar era um tanto sinistra, meio escura, e fechada por paredes dos dois lados (era uma espécie de corredor-escada). Aí houve uma época em que passava uma novela na TV Globo em que um personagem morria mas continuava vindo se balançar numa daquelas cadeiras de palhinha, que a gente chamava de cadeira-da-vovó. Havia uma cadeira dessas no andar de cima, e sempre que eu ia lá sozinha ela balançava terrivelmente, e eu disparava feito doida escada abaixo, certa de que alguma alma penada estava sentada lá, só me aguardando. Cheguei a sofrer umas quedinhas, mas nada grave. Lembro também que depois de assistir ao filme “Poltergeist – o fenômeno”,  subir sozinha se transformou em ato de suprema coragem. Além disso, passei a ter a nítida sensação de que sob um dos canteiros de plantas lá do quintal havia um cemitério, tal qual acontecia no filme. E assim minha infância foi povoada de cadeiras e redes que balançavam sozinhas, portas que se fechavam sem que ninguém empurrasse, ímpeto libertador de galinhas e um quintal que escondia ossadas de gente morta há muito tempo. 
Todas essas lembranças foram despertadas quando li uma maravilhosa poesia de Mario Quintana, que diz assim:

Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Da mesma forma que o poeta, adoro casas antigas e espaçosas, com algum toque de mistério. Não gosto da idéia dos arquitetos de aproveitar cada mínimo espaço para torná-lo funcional. A funcionalidade total retira a graça. Anula a alma. Não suporto que cada coisa esteja sempre no seu lugar. Há uma parte de mim que clama por um pouco de desordem. Uma casa arrumada demais me dá receio: sinto como se estivesse andando em campo minado. Espaços “inúteis”, uma boa varanda, um lugar para armar uma rede, um cantinho que tenha um ar de displicência. Um quartinho escuro, um corredor assustador. Sombras, possibilidades. 
Porque talvez eu ainda queira brincar. Talvez esse meu jeito de adulta séria e “respeitável” seja um disfarce e  eu ainda seja a criança que morre de medo de fantasmas e adora sonhar.

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