sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Uma pausa de mil compassos

Paulinho da Viola, numa de suas belas canções, diz que quer uma pausa de mil compassos, porque vai fazer um “samba sobre o infinito”. Sempre que ouço essa música penso nos períodos sabáticos. A enorme pausa para investir em interesses pessoais, sair totalmente da rotina, fazer uma reavaliação geral. Acredito que isso é essencial, e um dia ainda vou fazer algo do tipo. Não são simples férias, não dá pra reavaliar sua vida em 30 dias. É algo mais profundo e com duração maior; é como sair de você, da pessoa que você está acostumado a ser, transportar-se para outra realidade e, assim, desvinculado dos costumeiros padrões, descobrir novas aptidões, recuperar sonhos, enfim, conhecer-se um pouco mais. Não é à toa que Paulinho da Viola quer essa pausa tão grande: para fazer um samba sobre o infinito, ele precisa de tempo e de paz. 
Um dia ainda saio pelo mundo para ter essa pausa. Dido tem uma música bem legal que também fala um pouco sobre isso, sobre essa sensação de “não-pertencimento” que vem de vez em quando, e essa necessidade de reencontro: life for rent. Seria muito interessante  poder “alugar” a vida, deixar um substituto trabalhando em seu lugar, cumprindo a rotina, encarando o cansaço, reclamando da falta de tempo.... E, claro, depois voltar e encontrar tudo certinho!
Enquanto meu período sabático não vem, fico muito feliz em tirar uma semana de férias, a partir de amanhã!
Não vai dar pra fazer um samba sobre o infinito, mas já está valendo!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A dolorosa poesia cubana

Já revelei minha atração por Cuba no texto sobre os dois Pablos da minha vida. Eu tinha a impressão de que o regime era algo defendido pelos cubanos, exceto por uns poucos insatisfeitos oposicionistas. Não havia entrevista ou relato de Yoani Sanchez que me fizesse mudar de idéia. Eu tinha argumentos para rebater os dela, e pra mim ela era apenas uma revoltadinha. Eu achava que uma das maiores conquistas do povo cubano era a resistência ao apelo exacerbado do consumismo, a fidelidade aos valores, a persistência da ideologia. 
Até que li “Viagem ao crepúsculo”, de Samarone Lima. Não, não é um livro sobre vampiros. É o relato em primeira pessoa de uma viagem que ele fez a Cuba. Ele não foi para a Havana dos belos hotéis, do rum de primeira qualidade, da boa música. Não foi para a Havana dos turistas. Ficou hospedado clandestinamente na casa de cubanos, circulou pelo país integrado ao cotidiano deles. E o que mostrou através do livro  foi a mais pura revolta dos cubanos. Revolta por faltarem alimentos, por faltar qualquer mínimo conforto, faltar a tão falada saúde, a educação e, sobretudo, por faltar a liberdade. O livro conta a história de um povo que está farto, que não agüenta mais. O tratamento dispensado na ilha aos estrangeiros – turistas – é totalmente diferente daquele dispensado aos cubanos, que muitas vezes sequer podem entrar em hotéis e outros lugares reservados, que compõem uma espécie de zona proibida. Há duas moedas, o peso cubano e o peso “convertible” ou CUC, que vale muito mais do que o primeiro. Um dos cubanos que o autor conheceu  resume a história sobre a convivência entre as duas moedas assim: Há coisas em Cuba que não se explicam. São coisas que só acontecem aqui, é o que sobrou do que eles chamam de revolução. Além disso, o livro mostra a corrupção, o drible às cotas e às normas em geral quando se tem algum dinheiro.
Pois bem. Esse livro plantou em mim a semente da desilusão. Recentemente li uma bela crônica de outro escritor, retratando situações análogas. Mas nada me pesou tanto quanto um livro de poesia cubana que comecei a ler hoje. Os relatos são pungentes. O que vi nas poesias foi algo parecido com um cansaço, um cansaço extremo, e uma melancolia sem fim. Morte, brutalidade, desassossego, às vezes ironia, lamentações. Por isso criei um tópico só para essas poesias, pois à medida do possível quero transcrever as minhas preferidas.
Começo com uma de Reinaldo Arenas. Consta no perfil do autor que ele foi rotulado de “contra-revolucionário”, tendo início uma perseguição implacável, em razão da sua oposição ao regime e também pelo fato de ser homossexual. Esteve preso, mas conseguiu asilo nos EUA. Morreu em 1990. 

QUANDO LHE DISSERAM

      Quando lhe disseram que estava vigiado
que à noite quando ele saía
alguém com uma chave-mestra entrava na habitação
e remexia nos frascos de aspirina
e nos consabidos, indiferentes, livros;
      quando lhe disseram que dezenas de polícias
em sua honra se afadigavam,
que tinham conseguido subornar os seus familiares mais
       chegados,
que os seus amigos íntimos
ocultavam atrás dos testículos pequenos livretes
onde anotavam os seus silêncios e vírgulas,
                                                         não sentiu medo,
mas sim uma certa sensação de enfado
que instantaneamente soube controlar:
Não vão conseguir, prometeu a si mesmo, que me considere 
       importante.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Paulistanices em quatro tópicos

1. Simplesmente eu, Clarice Lispector. Tive a felicidade de assistir a essa peça, com textos de Clarice adaptados e interpretados por Beth Goulart, que ora encarna a própria escritora, no divã, em entrevistas e em meras citações, ora se transforma em algumas personagens de dois de seus livros, "Perto do coração selvagem" e "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", além dos contos “Amor” e “Perdoando deus”. Pra quem não conhece Clarice Lispector a peça é  muito interessante e certamente estimula a leitura. Os textos falam de deus, de amor, de dúvida, contradição... enfim, são de uma riqueza capaz de deleitar  mesmo quem não tem familiaridade com a escritora. Pra quem já gosta dela, bem, aí eu diria que a peça é simplesmente perfeita. Os trechos foram muito bem escolhidos, a ligação entre a fala de Clarice e a de seus personagens é de uma precisão espantosa, formando um todo coerente e absolutamente encantador. A atriz, então, é um show à parte. A elegância, a expressão corporal, a voz (ela canta e dança na peça), a imitação da língua presa de Clarice...tudo diz que Beth Goulart mereceu os prêmios que já ganhou com essa apresentação. A propósito, lembrei-me dos atores que começam na rede “grobo”, geralmente em “Malhação”, achando que ser ator é decorar um texto e fazer caras e bocas diante da câmera. Quanta diferença que é ver uma atriz completa em ação. Já gostava dela, achava simpática ,  mas agora, decididamente, virei fã. 

2. Scorpions, a turnê de despedida. Não pude ir para o Sun Rock em João Pessoa, mas claro que não ia perder os sessentões pinotando no palco pela última vez. Estava um frio absurdo e só depois de uma hora e meia na fila (junto com milhares de pessoas) vieram avisar que...estávamos na fila errada! E só avisaram ao pessoal do final, e todos saíram correndo feito loucos, de modo que a entrada no Credicard hall foi totalmente atrapalhada. Mas o show fez com esses maus momentos fossem superados. Belíssima apresentação, os telões estavam perfeitos, mostrando a trajetória da banda, as capas dos discos, e até a queda do muro de Berlim, quando tocaram Wind of Change. Eu ouvi Wind of Change pela primeira vez quando tinha entre treze e catorze anos (haja tempo...) e até hoje essa música me emociona e me faz voltar àquela época. Lembro que eu estava sentada lendo "Capitães de Areia" e ouvindo rádio; a música começou a tocar, eu parei pra ouvir e passei minutos encantada, querendo segurar o tempo naquele momento exato, até porque era muito difícil comprar discos e de certo modo eu dependia das FM´s...Lembro também de um professor de inglês que deu a letra dessa música numa aula, e ouvimos e cantamos várias vezes, e pra mim foi um êxtase. 
E claro que eles tocaram Holiday, Rock you like a hurricane, Still loving you, dentre outras clássicas, mas um excelente momento foi também  com uma canção do disco novo: The best is yet to come. Enfim, uma super despedida, que vai deixar saudade. 

3. As paulistanas. Fez  um frio danado na cidade e as mulheres de São Paulo estavam muito bonitas. Uma explicação aos homens: como diz Rita Lee, mulher é bicho esquisito. Nós olhamos muito mais para outras mulheres do que para os homens, porque gostamos de analisar, medir, avaliar, comparar, invejar...é uma apreciação estética, analítica, entendem? Pois bem, olhei muuutio para as belas roupas que elas usavam nesse frio. Não sou ligada nessa coisa de moda, desfiles, acho um saco, mas gosto de ver as pessoas nas ruas, no metrô, e aqui em Natal não dá pra fazer isso, primeiro porque quase ninguém anda pelas ruas. Não temos o hábito de caminhar ao ar livre. Segundo porque não tem metrô! E depois porque esse calor acaba com qualquer produção.  E o que se vê nos shoppings é na maioria das vezes mera transposição do que estava nas capas de revistas e vitrines, sem muita criatividade. Uma coisa insossa, uma coisa bem...Natal!
Então, a avenida paulista é uma beleza para olhar as roupinhas e combinações. Acho que o modo de se vestir das paulistanas traduz muito a diversidade cultural que existe lá, essa coisa bem urbana e meio solitária. Vi  muitos trench-coats, casacos em geral, meia calça, sapatilhas fofas, botas, sobreposições, só roupa que eu adoro!  A verdade é que no frio as mulheres têm mais classe, mais elegância, ficam mais misteriosas e com um ar blasé, bem mais legal do que essa coisa oferecida do short super curto com sandália alta, hit aqui em Natal. 

4. Saudade. Se me dessem um saco gigante de pipoca, uns sanduíches e coca-cola eu passaria um dia inteiro no Museu da Língua Portuguesa, vendo filminhos, brincando de formar palavras e lendo Fernando Pessoa. São Paulo é o que há de bom!!! Queria mais...



terça-feira, 14 de setembro de 2010

Eu te amo

- Eu te amo.
Ela disse, mordendo os lábios. Depois, pergunta-lâmina:
 - Você me ama?
Os olhos pareciam um punhal, a expressão era de desafio.
 Amor.  Amor?
Eu a vi pela primeira vez andando pelas ruas do centro, carregando os livros com uma expressão meio perdida, espreitando as vitrines com olhar de cobiça. Criança que não tinha dinheiro para comprar os brinquedos. Meus olhos iam muito lentamente do dedo dos pés, das unhas pintadas com um esmalte vermelho sangue, aos limites das coxas que o vento, complacente, ofertava ao mundo cada vez que levantava suas saias. 
Depois minhas pupilas delineavam a cintura, fina cintura, acompanhavam a curva ascendente,  pairavam pelos seios escondidos sob a blusa, brincavam com o pescoço, faziam cócegas pelo rosto, circundavam a boca, deslizavam para as orelhas. Aí penetravam em cada onda dos cabelos, giravam, tontas, e depois, cansadas, pegavam um atalho pelas sobrancelhas e chegavam aos olhos. E como num assalto, os meus olhos ficavam sem reação diante dos olhos dela. Acovardados. Essa dança leve e descompassada desde o princípio foi meu maior vício.
Era 1999. Era maio e a cidade ganhava um ar ao mesmo tempo aconchegante e deprimente por causa da chuva fina que caía no fim da tarde. E eu achava que ela ficava perfeita nesse clima. Não, ela decididamente não combinava com o calor. A pele muito branca, os cabelos negros, os olhos grandes e escuros. Os lábios densos, abertos, de um vermelho antigo. Aqueles lábios em outra encarnação tinham sido uma ameixa fresca. E as curvas suaves, intocadas por essa parafernália das academiais, que deixa as mulheres com um ar de quem está sempre perguntando: “e aí, vai encarar?”.  Ela, não. Sua provocação era suave e agridoce.
E eu adorava fingir que não a conhecia, ficar esperando a sua passagem, sentado em algum boteco do centro, aquele centro de antigamente, bebericando cachaça, só pra brincar de sermos desconhecidos. Ela aceitava o jogo. Fazia de conta que não me via, e andava devagar, deixando-se acariciar pelos meus olhos, um sorriso mal contido, meio de lado, que mostrava uma pequena parte dos lindos dentinhos brancos e miúdos. Depois, sem dizer uma palavra, eu parava diante dela, que fingia não me olhar, virava para o lado, o meio sorriso sempre ali. Num cortejo mudo, eu lhe beijava as mãos.  E então brincávamos de dois estranhos terrível e subitamente atraídos um pelo outro, que entravam na primeira pousada que encontrassem. Não nos chamávamos pelos nomes. Apenas entrávamos, e eu segurava seus cabelos e acariciava a nuca, conduzindo-a para a cama. Ela  deixava, obedecia. Entregue. E depois de tudo caíamos nas maiores gargalhadas e saíamos para jantar pelas padarias, conversando besteira, falando de música, cantando juntos e rindo como crianças.
As nossas melhores tardes tinham sido assim, nesse jogo alucinante pelas ruas de Natal, e essas tardes vinham sendo também as melhores da minha vida. Mas não falávamos de amor, esse recurso literário.
Até que um dia veio a  pergunta, o desafio. 
Após a inquisição, os olhos dela resistiram firmes durante todo o silêncio das minhas divagações. Não respondi. Peguei-a pelos ombros, coloquei o corpo dela de frente para o meu. Beijei-lhe o rosto, acariciei os cabelos, coloquei-a de volta na cama e, sem uma palavra, lentamente, adormecemos.
Depois desse dia, nunca mais nos vimos.

(2006, depois de ler "O jogo da Amarelinha", de Cortazar)

The John Lennon time capsule

Como parte da comemorações dos 70 anos de Lennon, três cápsulas do tempo, devidamente lacradas, serão preservadas para serem abertas em  9 de outubro de 2040, data que marcará o centenário de Lennon. As cápsulas conterão álbuns da carreira solo, além de mensagens dos fãs. Uma delas ficará no  Museu do Rock de Cleveland, em Ohio, e não se decidiu ainda o destino das outras duas. O projeto conta com o apoio de Yoko Ono. O site do projeto está aqui.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Pablito, a história de duas paixões.

1) O primeiro Pablo
Conheci Pablo Milanés (o cantor cubano) em 1998. Era o último ano de faculdade, e a idéia de luta, de dificuldades a serem vencidas, tudo isso era o futuro, um futuro que acenava com nenhuma certeza mas com mil perspectivas. 
Eu sempre fiz um gênero meio esquerdista-sentimental, esquerdista-sonhador, se é que alguém me entende. O tipo que era fã do Lula metalúrgico; o tipo que tinha lido cinco vezes os “Capitães da Areia” de Jorge Amado, e achava linda a história do ex menino de rua que crescia e virava líder grevista; o tipo que tinha tentado ler “O capital” diversas vezes; que pegava livros emprestados com os professores de história;  que se apaixonava por garotos de cabelo grande e brinco na orelha; que morria de vontade de conhecer Cuba; o tipo que sonhava em utilizar a profissão para fazer justiça social. Finalmente, o tipo que, depois que de conhecer Pablo, chorou ao ouvir yo pisare las calles nuevamente, you no te pido, cancion para unidad latonoamericana e acto de fé.  
Pablo embalou toda uma fase da minha vida, de muita expectativa e sonho, de uma ingenuidade que foi se perdendo pelo caminho. 
E depois de me apaixonar pelo Pablo das letras de protesto, caí de amores pelo Pablo romântico, com suas lindas e tristes canciones. É que eu também sou do tipo que acredita que o amor é uma coisa revolucionária, e que é preciso sentir a emoção de amar sem regras e sem medidas. E que quando essa emoção se vai, é preciso ter a dignidade de reconhecer o fim. Para vivir foi a música que impulsionou uma grande mudança na minha vida. 
Aí depois de tudo, superada a  tristeza, comecei a namorar o Pablo alegre, com suas proposiciones e com muito ritmo.  O CD “Pablo Querido” (que tem uma belíssima introdução feita por Gabriel Garcia Márquez), no qual ele canta com intérpretes do mundo todo, inclusive do Brasil, tornou-se  para mim referência de beleza, emoção e musicalidade. 

2) O segundo Pablo
O segundo Pablo chegou em um momento inusitado. O ano era 2004. 
Eu nunca tinha tido animal de estimação. Quer dizer, na infância tive um gatinho, mas ter um gatinho, pra mim, era só observá-lo à distância; eu não brincava com ele, não chegava muito perto. Na adolescência tive um urso de pelúcia enorme, chamado Onofre, mas nossa interação, obviamente, também não era das melhores. Animais não eram o meu forte.  É que eu era o tipo que passava mal em simples aulas de biologia, do tipo que não suportava ver sangue, que tinha “gastura” de tocar nos animais e sentir os ossos,  os órgãos internos...é, eu era do tipo muito fresca. 
Aí me chamaram pra ver uma ninhada de akitas, os belos cães japoneses. Insistiram demais pra que eu ficasse com um. Eu??? Ora,  eu não era do tipo que cuidava de cachorro. Mas pensei bem e vi que um dos cãezinhos era meu tipo...assim, ele era meio de esquerda, sabem como é? Em uma ninhada de vários cãezinhos brancos e dourados, ele era o único pretinho! 
E o danadinho me pegou. E mudou a minha vida. Nós praticamente crescemos juntos, porque eu voltei a ter infância. Saía correndo cada vez que ele roubava minhas sandálias, dançava com ele, e certa vez chegamos até a tomar um uísque juntos, mas que fique bem claro: ele bebeu um gole do meu copo em um momento de absoluta distração. E levou bronca por causa disso. 
Lembro que na primeira vez em que saímos para a rua, senti dó de colocar coleira, porque nas minhas malucas imaginações, no dia em que saíssemos para passear ele iria tranquilamente ao meu lado, solto, e acho até que no fundo eu imaginava que ele ia conversando comigo!
Esse cãozinho foi pra mim a revelação de um mundo novo: o mundo do toque, dos ossos e vísceras, do cuidado com outro ser. Do banho sem molhar as orelhas, do passar pomadinha, do não poder esquecer de jeito nenhum o jantar (o dele, claro). Um mundo palpável, amoroso e lúdico. A casa se tornou um lugar alegre, pois cada vez que eu chegava era recebida com um belo uivo (sim, os akitas parecem lobos e gostam de uivar).  Claro que, apaixonada assim, eu não fui exatamente uma dona rigorosa e ele não é exatamente um cachorro educado e obediente. Uma vez tomou de minhas mãos uma caixa de chocolate que eu tinha acabado de ganhar, saiu correndo feito louco e ainda conseguiu comer uns três, com papel e tudo. Costumava me derrubar cada vez que eu chegava em casa, pra tomar minhas sandálias e ir enterrá-las no jardim. 
Tá, eu morro de remorso quando vejo na TV os programas sobre adestramento e educação dos cachorros. Tenho remorso porque penso que fiz tudo errado e criei um monstrinho. 
Como se não bastasse, foi graças a ele que resolvi cuidar também de outra coisinha fofa: a digníssima  akita-esposa, a Sra. Maria Lola Milanés (vulgo Lolita), que merece uma historinha só pra ela.
 Ops...o sobrenome dela é Milanés??
Ah, eu não contei ainda? Quando levei pra casa aquele akitinha lindo, veio a questão: que nome dar pra ele? Não queria “rex” nem nada do tipo e pensei que seria uma boa dar o nome de um cantor que eu apreciasse. Pensei, pensei, e então no nosso primeiro dia juntos,  ele tomava água timidamente enquanto eu o observava e ouvia “la felicidad”. Aí ficou decidido: Pablo. Pablo Milanés, meu amorzinho torto, desobediente, anárquico, malandro, e talvez por isso mesmo tão querido. 
Pablo querido.  

O mundo está ao contrário e ninguém reparou...

Na revista "Isto é" desta semana saiu o trecho de uma entrevista com o antropólogo Roberto DaMatta, sobre seu mais novo livro, que trata do comportamento do brasileiro no trânsito. O antropólogo é conhecido por analisar e desvendar o país com base no estudo de temas como carnaval, futebol e o famoso “Você sabe com quem está falando?”. Vale a pena ler:

"...nosso comportamento terrível no trânsito é resultado da nossa incapacidade de sermos uma sociedade igualitária; de instituirmos a igualdade como um guia para a nossa conduta. Nosso trânsito reproduz valores de uma sociedade que se quer republicana e moderna, mas ainda está atrelada a um passado aristocrático, no qual alguns podiam mais do que muitos, como ocorre até hoje. Em casa, nós somos ensinados que somos únicos, especiais. Aprendemos que nossas vontades sempre podem ser atendidas. É o espaço do acolhimento, do tudo é possível por meio da mamãe.  Daí a pessoa chega na rua e não consegue entender aquele espaço onde todos são juridicamente iguais. Ir para a rua, no Brasil, ainda é um ato dramático, porque significa abandonar a teia de laços sociais onde todos se conhecem e ir para um espaço onde ninguém é de ninguém. E o trânsito é o lado mais negativo desse mundo da rua. É doentio, desumano e vergonhoso notar que 40 mil pessoas morrem por ano no trânsito de um país que se acredita cordial, hospitaleiro e carnavalesco. No Brasil, você se sente superior ao pedestre porque tem um carro. Ou superior a outro motorista porque tem um carro mais moderno ou mais caro. O motorista não consegue entender que ele não é diferente de outro motorista, do pedestre, do motorista de ônibus. Que ele não tem um salvo-conduto para transgredir as leis. No Brasil, obedecer à lei é uma babaquice, um sintoma de inferioridade. Quem obedece é subordinado porque a hierarquia que permeia nossas relações sociais jamais foi politizada. Isso é herança de uma sociedade aristocrática e patrimonialista, em que não houve investimento sério no transporte coletivo e onde ainda impera o “Você sabe com quem está falando?”.

O texto é de uma precisão fantástica. E seus princípios se aplicam não só ao trânsito, mas à vida cotidiana como um todo. Igualdade e cordialidade (a autêntica, não a de conveniência) realmente não são o nosso forte. Oscilamos entre a subserviência com os que podem mais do que nós e o massacre dos que podem menos. Acho que já disse isso aqui, mas eu não vejo a vida melhor no futuro; o muro que nos rodeia não é baixo e não é só de hipocrisia. É de falta de educação, falta de valores, princípios, respeito e, por que não dizer, de noção. Ultimamente tenho tido a impressão de que quase tudo está ao contrário do que deveria ser. As pessoas esbarram em você e não pedem desculpa, não pedem por favor, com licença, não dizem obrigado. Isso quando não são truculentas e francamente desagradáveis. E, claro, acreditam que tudo se resolve com dinheiro (quem pode pagar pode tudo).
Nesse feriado, por exemplo, um rapaz que tinha encontrado um cãozinho perdido na rua falou comigo e com meu marido (já que temos cachorro) para saber se não conhecíamos o dono. Não conhecíamos, mas colocamos anúncio na internet, e avisamos a alguns veterinários. Eis que uma mulher me liga dizendo-se a dona. Na hora de devolver o pobre do cãozinho, ele não se mostrou nada feliz em ver a dona – o que não é um bom sinal- e ela também pouco ligou pra ele. Pior: ainda foi grosseira com o rapaz, não disse nem obrigado e virou e perguntou, como imagino que um cliente pergunte a uma prostituta, com as calças na mão, levantando da cama: “e aí, quanto foi o serviço?”. E mandou que a filha (suponho que fosse filha) “acertasse" o preço conosco. 
Como minha atividade profissional não é exatamente a de caçar cães perdidos para receber alguma recompensa, disse que não era nada, que não havia serviço nenhum; a mesma coisa disse o rapaz que havia levado o cachorro pra casa e até aquele momento tinha estado  passeando com ele na praça, com o maior carinho. 
No maravilhoso mundo mágico de Lisandra (a terra do Sempre) é permitido não gostar de cachorro, mas é presumido que quem se dispõe a criar o faz porque gosta do bichinho; e nesse mundo, quando alguém perde seu cãozinho, fica feliz se ele é recuperado intacto e diz um emocionado “obrigado” a quem o salvou de atropelamento, cuidou dele e se preocupou em anunciar para encontrar o dono. 
E nesse maravilhoso mundo mágico de Lisandra o que Roberto Damatta falou seria ficção,  seria parte de um livro que poderia se chamar “Adeus à terra do nunca”

PS: o título é trecho da letra da música "Relicário", de Nando Reis

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A coisa mais fina do mundo

A mãe de Adélia Prado achava estudo a coisa mais fina do mundo, mas Adélia discordava:

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Eu também acho que o sentimento – um amor que transcende sua própria semântica - é uma coisa muito bonita e muito fina. Da mesma forma a bondade e o perdão.  Mas pra mim a coisa mais fina do mundo é o respeito. O respeito e sua filha dileta, a tolerância.
Há cerca de 20 anos um professor de história do meu colégio escreveu no quadro negro uma frase mais ou menos assim: “Posso não concordar com uma só palavra do que disseres, mas lutarei a vida inteira pelo direito que tem de dizê-las”. Ele disse que essa frase era de Voltaire, filósofo iluminista. E isso faz vinte anos, mas eu nunca esqueci, porque foi uma das coisas mais bonitas que eu já li. Não concordar com o outro, achar que ele está errado, mas respeitar o direito que ele tem de se expressar. Respeitar é saber olhar para o outro, é saber enxergar essências.  O respeito é a base de tudo, até mesmo do sentimento. Ele pode estar presente tanto num beijo quanto na discussão, numa crítica e num elogio. É uma coisa muito fina porque por definição é a base do amor e da amizade, mas pode existir até entre dois inimigos. 
Houvesse mais respeito e teríamos menos violência, entre países e entre pessoas. Houvesse mais respeito e haveria mais sentimento. 
Adélia Prado achava sentimento a coisa mais fina do mundo. 
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o respeito.