quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Sobre brincar e viver

Rir é uma das melhores coisas da vida, mas parece que às vezes entramos em um ciclo de pressão, responsabilidades, exigências e  tristeza que nos retira temporariamente essa capacidade. Eu mesma às vezes fico tão séria, imprimo tanta gravidade às coisas, que esqueço que quase nada é tão importante quanto parece. 
Quando somos crianças, rir é bem mais fácil. Porque nessa fase, brincar é um ato natural, e a brincadeira é mãe do riso. Mas à medida que crescemos vamos também esquecendo o que significa brincar. 
Eu não gostava muito de ninar bonecas, preferia cortar o cabelo delas (houve uma época em que pensava em ser cabeleireira). Também gostava de maquiá-las, e meu sonho de consumo era uma que tinha só a cabeça e a brincadeira consistia em pintar o rosto todo. Adorava, também, trocar a roupa delas, mesmo que a roupa "nova" fosse um paninho qualquer e não caísse tão bem. Enfim, eu não me conformava com o brinquedo original. No fim das contas, até onde me lembro minhas bonecas eram sempre meio sujas, mutiladas, de cabelo curto...
Hoje, adulta, muitas vezes tenho o desejo de, de vez em quando, simplesmente parar tudo, repensar, desfazer, reconstruir. Fico pensando que esse desejo pode ser uma continuação da minha vocação para cabeleireira de bonecas. Minha insubordinação íntima com certas regras e convenções da vida pode ter começado no exato momento em que tosei a primeira cabecinha! 

Quebrar o brinquedo
é mais divertido.
As peças são outros jogos:
construiremos outro segredo.
Os cacos são outros reais
antes ocultos pela forma
e o jogo estraçalhado
se multiplica ao infinito
e é mais real que a integridade: mais lúcido.

Mundos frágeis adquiridos
no despedaçamento de um só.
E o saber do real múltiplo
e o sabor dos reais possíveis
e o livre jogo instituído
contra a limitação das coisas
contra a forma anterior do espelho

E a vertigem das novas formas
multiplicando a consciência
e a consciência que se cria
em jogos múltiplos e lúcidos
até gerar-se totalmente:
no exercício do jogo
esgotando os níveis do ser.

Quebrar o brinquedo ainda
é mais brincar.
(Orides Fontela)

Quebrar o brinquedo, construir novos segredos, tudo isso, evidentemente, é uma metáfora do viver. No fundo, a bela poesia de Orides Fontela diz assim (e eu assino embaixo) : romper as regras é muito mais viver. 

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