sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago e o precipício do pensar

Certos livros são perigosos. Você começa a ler,  como quem se aproxima da beirada de um precipício. De repente, se desequilibra, perde a velocidade da queda e depois não tem mais como voltar. Você caiu. O precipício (digo, o livro) mexeu com suas idéias e te deu uma pancada.
Foi assim com “O evangelho segundo Jesus cristo”, de Saramago. Eu devia ter uns trezes anos, era católica e “temente a Deus”, e esse livro plantou dúvidas , inquietações e até muita raiva do autor. Como ele ousava dizer tudo aquilo? 
E hoje todos os jornais anunciam que ele morreu e foi publicada uma nota afirmando que foi uma morte serena, em paz. Acho que morre serenamente quem viveu intensamente, quem viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Não sei se foi esse o caso de Saramago, pois não conheço detalhes da vida dele, mas a julgar por um poema belíssimo de seu livro “Provavelmente alegria”, ele experimentou e descobriu a vida de formas muito especiais: 

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste. 


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