sexta-feira, 18 de junho de 2010

Leminski e Clarice: a linha que nunca termina

Paulo Leminski e Clarice Lispector dificilmente aparecem juntos em artigos ou críticas literárias. Isso se deve a vários fatores. Por exemplo: em Clarice se destaca a prosa; em Leminski, a poesia (apesar de “Catatau” ser tido por muitos como um livro à altura de Finnegan’s Wake ou Ulisses, foi pouco lido e sequer é vendido atualmente em livrarias). Clarice é conhecida por ser uma autora “hermética”; Leminski é um “cachorro louco”, “Kamiquase”, bandido, samurai malandro, cheio de humor e ironia.  Então de onde tirei a idéia de traçar uma linha diagonal e estabelecer uma conexão entre os dois?
Tudo começou quando li a biografia de Leminski: O bandido que sabia latim, de Toninho Vaz.  Paulo Leminski era mesmo um cachorro louco, como consta no seu poema de autodefinição. Viveu com a intensidade de mil raios. Casou, foi professor de cursinho, descasou, morou em comunidade, lutou judô, encheu a cara, trabalhou com publicidade, encheu a cara de novo, flertou com o zen, fez hai cai, construiu poesias de rara beleza, foi parar num hospital de queimados, encheu a cara, teve um filho que morreu de câncer ainda criança, namorou com a tropicália, foi chamado de “poeta realce”, encheu a cara e morreu. Mas tudo isso foi consciente. Ele tinha dentro de si uma urgência, uma voz que gritava, que discordava, que lhe impunha um sentimento de estranheza e  dizia que o fato de viver neste mundo era uma “simples coincidência”. Ele tinha vida demais, autenticidade demais, lirismo demais, erudição em excesso. Um cara que sabia de cabeça se uma determinada citação estava ou não no livro “Finnegan’s Wake”, de Joyce. Capaz de um rigor técnico incrível em poesias curtas, de revelar uma nostalgia irônica, uma alegria triste e uma felicidade que se sabe imperfeita e precária (e talvez por isso mesmo tão boa!). 
Minha teoria é a seguinte: Leminski não cabia em si, não cabia em uma vida. Então ele explodiu. Explodiu nas poesias e no consumo excessivo de álcool. Ele sabia que não dava para continuar, que se continuasse morreria, mas mesmo assim seguiu em frente. 
E Clarice?
Bom, ano passado li também a biografia dela, que me causou uma grande impressão. Li sobre detalhes antes desconhecidos, como o sofrimento de sua família antes de chegar ao Brasil, a doença da sua mãe, a infância difícil, a morte do pai antes da publicação do primeiro livro. O casamento com um diplomata, as viagens, o sofrimento por viver uma vida que não parecia ser dela. A estranheza de si mesma quando participava dos jantares requintados e formais. A necessidade de dizer à irmã, nas cartas, que nunca desejasse ser uma pessoa diferente, que fosse apenas ela mesma. 
Então a impressão que tive foi a de que Clarice tinha dentro de si esse mesmo impulso incontrolável de vida,  espécie de pulsão de transcendência, um não caber em si. No fundo, ela era bastante parecida com Leminski nesse sentido. Mas viveu aprisionada por muito tempo...usando as palavras de um verso de Leminski, Clarice tinha o silêncio de quem grita.  Enquanto Leminski explodiu, Clarice implodiu. Construiu uma literatura introspectiva, e com ela lidava com as partes tempestuosas e obscuras de seu próprio ser. Nos livros ela podia ser má, confusa, podia dar livre curso às complicadas teias de pensamento e, no fim, morrer atropelada.
E na “vida real” cada um morreu como viveu: Leminski morreu de excesso, de cirrose hepática. Clarice morreu de câncer (e já dizia uma personagem de  João Ubaldo, que o câncer é a revolta das células insatisfeitas e reprimidas). 
Cada um lidou com os excessos e inquietações à sua maneira, e os dois deixaram uma literatura incrível, que fala de vida, de verdade, de disfarces, de morte e de redenção. E com essa literatura realizaram uma profecia poética de Leminski: tudo o que eles disseram, ainda que em prosa,  virou poesia. 


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