terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Um dom de causar conseqüências

Um amigo e “fornecedor cultural” me deu ano passado um MP3 com alguns discos de Sérgio Sampaio, cantor/compositor que eu não conhecia. Eu simplesmente parei ao ouvir ”Roda Morta - reflexões de um executivo”. 
“Esse cara leu a minha mente”. Foi o que pensei. A melodia, a voz envolvente e a letra que parecia ter sido criada para mim; na realidade, acredito que a letra pode ser consagrada como o Hino Oficial dos Servidores Públicos e outros trabalhadores que se encontrem com o saco lotado: “a sordidez do conteúdo desses dias maquinais”, isso define boa parte dos dias.
Então fiquei fascinada e quis saber tudo sobre Sampaio. E eis que me chega às mãos, pelas mãos de outro amigo, o livro “Eu quero é botar meu bloco na rua – A biografia de Sérgio Sampaio”. Acabei de ler ontem à noite.


Capa da biografia
Sempre me fascinaram as pessoas que parecem viver em outra sintonia; pessoas que receberam, por alguma razão, a alcunha de marginais ou, no caso específico de Sérgio e de certa leva de cantores e compositores da MPB da década de 70, “malditos”.  Não é à toa que algumas das minhas grandes paixões são artistas de certo modo deslocados: Leminski, Reinaldo Arenas, Torquato Neto, dentre outros. Eu acho impressionante essa coisa de não ter a preocupação com o salário de cada mês, de não se importar com o lugar em que vai dormir naquela noite, naquela semana, com o que vai comer no dia seguinte; essa coisa de defender a sua arte contra tudo, de se recusar a seguir ordens e ditames do mercado, de viver à sua própria maneira. Eu, uma comportada servidora pública, cumpridora da lei e da ordem, me pego vivendo através deles – Sampaio, Torquato, Leminski- todas as aventuras que meu lado A não permite.

Sérgio nasceu em 13 de abril de 1957, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), cidade que é também a de Roberto Carlos. Foi o primeiro de cinco filhos de seu Raul Gonçalves Sampaio, maestro de banda de música e fabricante de tamanco, e dona Maria de Lourdes de Moraes, professora primária.  O pai era extremamente rígido e repressor, e como é quase a regra nesses casos, o resultado foi um filho ávido por liberdade e totalmente rebelde,  contrário a toda forma de opressão. 


Ele começou como radialista, mas sua demissão em 1970, quando já morava no Rio de janeiro, precipitou a carreira de músico. Consta da biografia que nessa época ele deixou uma trouxa de roupa na casa de um amigo, onde ia tomar banho em dias alternados. Passou muitas noites em bancos de praças e chegou a pedir esmola para comer, até ser levado para morar na casa do estudante, um ambiente em plena efervescência cultural e política. Nessa mesma fase ele foi apresentado a Raul Seixas, que gostou bastante das músicas dele. Vale ressaltar que Raul era um “empaletozado” produtor da CBS. E foi pelas mãos de Raul que a carreira de Sampaio teve início. 


O livro tem passagens muito interessantes sobre a parceria e a amizade dos dois. Por exemplo: consta que Raul e Sérgio competiam para ver quem era o mais magro da dupla, e Raul dizia que Sérgio era tão magro, mas tão magro que se ficasse com tesão cairia pra frente! Em outra passagem é Sampaio quem tenta convencer  Raul a se lançar como cantor (coisa que a CBS não queria) e então Raul (quem diria) vai ao armário de sua cozinha, abre e mostra a Sérgio várias latas de leite, perguntando quem iria comprar aquele leite para sua filha se ele fosse se aventurar como cantor. Ainda sobre Raul, existe a engraçada história com Edy, homossexual assumido, que Raul chamava de “viado”; Edy resolveu se vingar e passou a ligar para ele à noite, com voz de mulher, dizendo várias obscenidades, e só depois Raulzito veio a descobrir que se tratava do seu desafeto, e não de uma mulher (mas no fim os dois terminaram ficando amigos). E não pode ficar de fora a divertidíssima saga da formação da Sociedade da grã-Ordem Kavernista e da gravação do  disco “sessão das dez”:


Em resumo, o livro é diversão na certa. 
Capa do disco


Para quem não conhece Sampaio, ele ficou famoso com a música “Eu quero é botar meu bloco na rua”, que dá nome à biografia. Depois disso, ele teve sérias dificuldades para lidar com a fama e terminou ficando com a imagem de artista difícil e intratável, passando em seguida a ser recusado pelas gravadoras. Teve também muitos problemas com a censura. Além disso, a  cobrança em função do “bloco” foi minando sua resistência; ele queria mostrar outras composições, mas todo mundo só queria que ele repetisse “o bloco”, a fórmula de sucesso e de dinheiro. 

Ele teve composições  gravadas por Erasmo Carlos, Gal, Betânia, Zizi Possi, Luiz Melodia... E há a engraçada história de que ele recebeu um bilhete de Roberto Carlos pedindo uma música nos moldes do “bloco”; Sérgio, porém, não conseguiu fazer nada, e terminou compondo uma música não para ser cantada por Roberto, e sim pelo próprio Sérgio, a belíssima canção “Meu pobre blues”, espécie de recado para o Rei:

Meu amigo,
Um dia eu ouvi maravilhado
No radinho do meu vizinho
Seu "rockzinho" antigo
E foi como se alguma bomba
Houvesse explodido no ar
E todo o povo brasileiro
Nunca mais deixou de dançar
E desde aquele instante
Eu nunca mais parei de tentar
Mostrar meu blues pra você cantar
Foi inútil...
Eu juro que tentei compor
Uma canção de amor
Mas tudo pareceu tão fútil
E agora que esses detalhes
Já estão pequenos demais
E até o nosso calhambeque
Não te reconhece mais
Eu trouxe um novo blues
Com um cheiro de uns dez anos atrás
E penso ouvir você cantar

Sérgio, como muitos outros de seu tempo, morreu em função dos excessos. O vício, principalmente no álcool, foi devastando a sua saúde, até que uma pancreatite crônica o levou. Era uma figura muito curiosa, extremamente magro, extremamente respeitoso com outros artistas e amigos, um beberrão sensível, desesperado, galanteador e boa praça. No You tube é possível encontrar diversos vídeos “caseiros”, de Sérgio tocando para amigos, em bares. Ele deixou um séquito de admiradores, dentre os quais Zeca Baleiro, que chegou a entrevistá-lo quando escrevia para um jornal e diz, no livro, que tem uma relação passional com o trabalho de Sampaio. Em 2005/2006 o próprio Baleiro lançou um CD póstumo de Sampaio: Cruel.   Em 1998 já havia sido lançado o “Balaio do Sampaio”, com músicas de Sérgio interpretadas por Chico César, Lenine, o próprio Zeca Baleiro, João Bosco, Zizi Possi, dentre outros.


A biografia, então, é um excelente livro. Conta a história de um grande artista, rejeitado e pouco reconhecido, apesar do enorme talento, e também a história  de toda uma época, que produziu nomes que marcaram a nossa música. A foto da capa do livro já revela muito do artista e de seu tempo:  um Sérgio de corpo inteiro, com os cabelos ao vento, com a sua famosa calça Saint tropez, sua indefectível magreza, braço em riste, e o inconfundível ar de criar evidências, o inegável dom de causar conseqüências. 


PS: O título da postagem é um trecho da música "Cabras pastando", de Sérgio Sampaio. 
O livro me deixou com uma dúvida: não tive certeza se a letra de Roda Morta é mesmo de Sérgio, ou de outro poeta, e ele apenas musicou. De qualquer modo, o tom desesperado e "augústico anjense" tem tudo a ver com Sampaio. 

3 comentários:

Ribamar Lopes disse...

Seu blog, de refinada inteligência, está muito bom! Esse "post" que o diga.

Lisandra disse...

ô Riba, obrigada. Vindo de você, é um tremendo elogio.
:)

Anônimo disse...

Adoro essa música,Lisandra. É bem difícil dizer alguma coisa sobre ela,porque ela fala por si- e por nós. Um abraço e boa sorte na sua luta diária contra a "sordidez do conteúdo desses dias maquinais".