domingo, 31 de julho de 2011

Museu de sensações

"No tempo da maldade acho que a gente nem era nascido” 
 (Chico Buarque)

Pedimos ao amor , que nos dê um pedaço de vida verdadeira, de morte verdadeira. Não lhe pedimos a felicidade,  nem o repouso, mas um instante de vida plena  em que os contrários se fundam  e vida e morte, tempo e eternidade, compactuem." 
(Octavio Paz)

Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tornaria indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? 
(Marcel Proust)


Era o momento mais feliz da minha vida, mas eu não sabia. Se soubesse, se tivesse dado o devido valor a essa dádiva, tudo teria acontecido de outra maneira? Sim, se eu tivesse reconhecido aquele momento de felicidade perfeita, teria agarrado com força e nunca deixaria que me escapasse. Levou alguns segundos, talvez, para aquele estado luminoso tomar conta de mim, mergulhando-me na paz mais profunda, mas ele me pareceu ter durado horas, até mesmo anos. Naquele momento, na tarde de segunda-feira, 26 de maio de 1975, em torno de quinze para as três, assim como nos sentíamos além do pecado e da culpa, o mundo todo parecia ter sido liberado da gravidade e do tempo. 
(Orhan Pamuk)





O turco Orhan Pamuk era um completo desconhecido para mim até algumas semanas  atrás, no entanto foi ele quem me fez  voltar a este blog e escrever.  Com seu “Museu da Inocência” ele foi responsável por uma noite de insônia e umas duas semanas de melancolia. 

A história do livro é relativamente simples. Kemal é um rapaz turco, que namora uma moça igualmente turca, porém considerada “avançada”  e culta para a sua época (anos 70), pois estudou na França.  É o casamento perfeito: a noiva, Sibel, é bonita, de boa família, e os dois se gostam, saem, se divertem, e têm uma vida perfeita pela frente. Mas como nem nos livros existe vida perfeita, certo dia ele vai comprar uma bolsa para Sibel e vê uma prima distante, Füsun, com quem passa a se encontrar em um apartamento. Kemal é o cara mais feliz do mundo, pois ama sua noiva e também a sua amante. Até que em determinado ponto ele deixa de se encontrar com Füsun, e aqui tem início sua curiosa trajetória.  Kemal passa a guardar todos os objetos que foram tocados por Füsun. Quando ele a reencontra – ela já casada com outro – começa a furtar pequenas coisas: pontas de cigarro que ela fumou, saleiros nos quais ela tocou, dentre muitos outros objetos, para formar o seu acervo pessoal. Ele chega a visitar milhares de museus para formar o seu museu, que conta a sua história com Füsun. 

E o livro é isso: é como se estivéssemos visitando esse museu, conduzidos por Kemal. Cada objeto tem sua história, seu momento. É como se realmente o leitor fosse o convidado, e fosse percorrendo os corredores desse museu. 

Mas as 562 páginas não tratam apenas dos personagens, nem trazem uma narrativa linear.  A certa altura,  “O Museu da Inocência”  passa a ser não um livro sobre a história de amor entre Kemal e Füsun, e sim um livro que conta a história dos meandros de um sentimento. Chega uma hora em que não sabemos mais se o que une Kemal a Füsun é amor ou obsessão, e o melhor de tudo, chega uma hora em que isso nem importa mais. Não adianta tentar rotular porque o autor não permite, e na minha opinião eis um dos grandes méritos do livro: ele põe abaixo nossos conceitos pré-estabelecidos, de amor, de paixão, de obsessão, a nossa mania de catalogar tudo.  


O livro traz também muitas reflexões sobre o tempo, e inclusive tem, mais de uma vez, referências a Proust:

Se pudermos aprender a parar de pensar em nossas vidas como uma linha correspondente ao tempo de Aristóteles, dando valor a nosso tempo por seus momentos mais profundos, cada um por si, esperar por oito anos à mesa de jantar de sua amada deixa de parecer uma obsessão tão estranha e tão risível, mas (como eu havia de descobrir muito depois) assume a realidade de 1593 noites felizes à mesa de jantar de Füsun. Hoje, lembro cada uma dessas noites em que eu ia jantar em Çukurcuma – mesmo as mais difíceis, mais cheias de desesperança e humilhação – como a felicidade. 



Outro ponto que me chamou atenção foi o fato de que, ao fim de tantas páginas, Füsun, a “protagonista”, se podemos defini-la assim, permanece sendo uma quase desconhecida para o leitor. Isso se deve muito à circunstância de o livro ser narrado por Kemal, e assim não penetramos em nenhum momento na mente dela.  Ele fez de Füsun uma espécie de “Capitu” turca: será que ela era mesmo tão bonita, ou grande parte da beleza dela vinha do filtro do olhar de Kemal? Será que ela realmente só se envolveu sexualmente com Kemal, como ela mesma afirma, ou será que chegou a ser feliz com o outro homem com quem viveu?  


Há um momento (e isso é bem curioso) o próprio autor (Pamuk) surge como personagem do livro, e conversa com Kemal sobre Füsun, e quase podemos sentir ciúme por vê-la descrita por outro homem que não Kemal. 

Quem lê não pode deixar de se perguntar se o museu realmente existe, pois no livro há inclusive um ingresso para ele. E o autor de fato está montando esse museu, na Turquia, e na última entrevista que li ele diz que está perto de concluir. Outra pergunta que me fiz foi: terá o escritor se apaixonado tão desgraçadamente, igual ao seu personagem Kemal? Porque só quem sofreu desgraçadamente pode escrever um livro desse, com descrições tão precisas. Pois eis que numa entrevista lhe fizeram justamente essa pergunta, e ele deu a seguinte resposta:

Escrever um romance é escrever um texto que o seu leitor pense ter sido vivido por você. Se você diz que não, o leitor dirá: "Não minta, é você. É tão franco, tão convincente, como você pode saber tudo isso?". E você diz: "É ficção". E ele: "Não, não".
Está na essência da arte do romance, fazer o leitor achar que o que aconteceu a Kemal ocorreu a Orhan também.
Bem, deixe o leitor pensar assim. Mesmo se eu disser que não, pensarão que estou mentindo. Sim, eu estou mentindo, eu gosto de mentir, porque sou um ficcionista.

Em resumo, é um livro fascinante. Não o indico a qualquer pessoa. É um livro para quem tem calma e tem tempo (ou consegue arranjar tempo) para ler. E pelo seu poder de evocar emoções (as mais melancólicas possíveis), também é um livro para quem não tem tendências suicidas!

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