quinta-feira, 21 de abril de 2011

Huevos revueltos, um leve arrepio e um bar chamado Macondo

Recentemente comprei um pequeno livro  chamado “Diário de Viagem”.  Descobri, então,  a maravilha que é fazer um diário com o registro das viagens. Eu sempre gostei muito de diários; tenho um no qual registro sonhos e outro que é uma espécie de auto-análise; sem contar que este blog, como o próprio nome diz, foi feito para guardar minhas impressões e experiências, sendo então um tipo de diário. Acho muito interessante ver que pessoa você era há algum tempo; lembrar do que sentiu, do que experimentou...


Então, usei meu livrinho pela primeira vez em Buenos Aires, para registrar uma semana de férias.  A cidade virou um reduto de brasileiros, principalmente do sul/sudeste, pela proximidade e pela facilidade para chegar ao país.  Dependendo de onde você esteja, ouve mais português do que espanhol. A cidade também já não é mais aquela onde tudo é baratinho, onde se come  bem por uns poucos pesos. Mas ainda encanta, e muito.

Certa vez li um artigo, não lembro onde nem lembro quem escreveu, mas que despertou uma espécie de sentido oculto em mim: o de prestar atenção ao som das palavras e de lhes atribuir significados diferentes. Nesse texto, o autor dizia que achava linda a sonoridade de certos vocábulos. Por exemplo: carimbo. “Carimbo?” Pensei eu. Ora, carimbo me lembra burocracia e  chatice. Mas resolvi aceitar o desafio do autor e pronunciei em voz alta: carimbo. Depois dei uma entonação diferente, uma entonação meio italiana, algo assim: cariiiimbô (com a tonicidade no "im", apesar do acento circunflexo no final).  Atenção, muita atenção: não confundir com carimbó...Toda a pronúncia tem que ser meio fechada. Não sei se me fiz entender... Mas trata-se de pronunciar “carimbo” como se você fosse um “amante latino” fazendo  uma declaração de amor! Cariiiimbô! É realmente uma palavra linda!!! E o que tem carimbo com Buenos Aires? Bom, é que no café da manhã o hotel oferecia “huevos revueltos”.  Ovos mexidos, se fosse traduzir, mas como se perde com essa  tradução! "Huevos revueltos" é uma expressão linda. É um crime ler e pensar em ovos mexidos. Melhor pensar em "La revolución de los huevos!" Yo pisaré las calles nuevamente, gracias a La revolucion gloriosa de los huevos!  "Huevos revueltos" me faz pensar em insurreições, grandes rebeliões, lutas por um ideal...e los huevos revueltos tornaram meu café da manhã bem mais emocionante! Viva los huevos. Comi religiosamente todos os dias!

E claro que também fui a um show de tango; é praxe. Já conheci três casas lá: uma “mediana”, ou seja, nem tão grande nem tão pequena, outra bem maior e dessa vez fui em uma das menores, ou ao menos das menores entre as que eu conheço: El viejo almacén. Nunca fui ao “Senhor Tango”, um mega espetáculo ao estilo da Broadway.  Prefiro o tango mais próximo de suas raízes, mais intimista. Minha história com o velho armazém começou quando fui à cidade pela primeira vez, em 2006, e trouxe um imã de geladeira com um casal dançando tango na frente desse local; na época eu nem sabia que era uma casa de tango. Quando soube, deu vontade de ir, mas só agora concretizei. 
E achei lindo; o lugar é pequeno, as pessoas não ficam comendo durante o espetáculo (coisa que eu abomino) e não havia aquela profusão de dançarinos, que impede a concentração na dança. Eu gosto de olhar cada parte do corpo dos dançarinos: ora me concentro no rosto, ora apenas nos pés. Adoro ficar observando o movimento dos pés. Por isso prefiro quando um único casal entra no palco por vez; no máximo dois ou três; mais do que isso me atrapalha. Lá, pude captar cada detalhe, cada olhar trocado entre eles, cada gesto nos lábios, e um roçar leve de um pé no outro, que mais de uma vez me deu arrepios. É que o tango é uma dança de muita insinuação, e é preciso um cuidado delicado para que a insinuação não passe dos limites, para que não seja escancarada. Basta uma respiração mais puxada quando o rosto dele passa próximo ao pescoço dela, um olhar de promessa, uma pausa e um leve roçar nos pés. Então, para quem gosta de sutilezas, para quem é capaz de se arrepiar com um olhar ou um roçar de pele, El viejo almazén é o tango!

E além de ir ver um tango, é praxe também caminhar pelo maravilhoso bairro de Palermo. Numa dessas andanças, eis que me deparo com um bar chamado Macondo. 
Macondo, para lembrar, é o famoso vilarejo dos livros de Gabriel Garcia Marquez. Admirei o bar, mas não quis entrar. O local estava muito cheio, e eu tive medo de me decepcionar, de ser um bar muito comum, e preferi ficar com a curiosidade e o mistério. Será que em Macondo existe alguma coisa especial, alguma referência literária lá dentro? Será que lá se apresentam artistas legais...? Não sei. Da próxima vez eu descubro; até lá, fico com a deliciosa descoberta de ter visto um bar chamando Macondo. 

Não faria justiça se não falasse também da fantástica apresentação da orquestra filarmônica no teatro colón. Eu simplesmente amo essas apresentações, porque nenhum Cd é capaz de transmitir a emoção de uma orquestra inteira tocando ao vivo. Sem contar o charme dos músicos e seus instrumentos; acho incrível aquele contrabaixo imenso, e nada há de mais charmoso do que um violoncelo, especialmente se  tocado por una bella donna.  Eu queria ser uma violoncelista misteriosa, que fica tocando com um ar distante e de preferência que mora em Paris! Ahaha, nada pra mim pode ser mais charmoso do que isso.  
E para prolongar um pouco mais a viagem, estou lendo uma antologia de poesia argentina, e destaco a seguir uma poesia de Joaquín Gianuzzi (pra quem gosta de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, recomendo ler até o fim):


Compré café, cigarrillos, fósforos.
Fumé, bebí
y fiel a mi retórica particular
puse los pies sobre la mesa.
Cincuenta años y una certeza de condenado.
Como casi todo el mundo fracasé sin hacer ruido;
bostezando al caer la noche murmuré mis decepciones,
escupí sobre mi sombra antes de ir a la cama.
Esta fue toda la respeuesta que pude ofrecer a un mundo
que reclamaba de mí un estilo que posiblemente
no me correspondía.
O puede ser que se trate de ontra cosa. Quizás
hubo un proyecto distinto para mí
en alguna probable lotería
y mi número se perdió.
Quizá nadie resuelva un destino estrictamente privado.
Quizá la marea histórica lo resuelva por uno y por todos.
Ma queda esto.
Una porción de vida que me cansó de antemano,
un poema paralizado en mitad de camino
hacia una conclusión desconocida;
un resto de café en la taza
que por alguna razón
nunca me atreví a apurar hasta el fondo.

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