segunda-feira, 19 de março de 2012

Precisamos falar sobre o Kevin


“Nós jamais vamos ter certeza. Nós não fazemos a menor ideia do que é ter um filho. E só existe uma forma de descobrir.” 


Existem livros dos quais a gente gosta. Apenas gosta. E existem outros que simplesmente nos infernizam; não conseguimos fazer nada até terminar de ler, e depois que terminamos precisamos desesperadamente contar os detalhes para mais alguém, ou quem sabe escrever resenhas metidas a besta em blogs que ninguém lê. “Precisamos falar sobre o Kevin” fez isso comigo e mais um pouco: rendeu-me pesadelos e uma noite agitada que terminou por me causar uma baita dor no pescoço (torcicolo, desconfio eu). Melhor impossível. Amo livros que me abalam. 

A narradora é Eva, através de cartas que ela escreve ao marido ausente. Eva tem descendência armênia e é uma mulher que ama a liberdade; ela teve a ideia de fazer guias de viagens alternativas, de baixo custo, bem na época que antecedeu a explosão dos mochileiros. Resultado: o guia virou uma bem sucedida empresa, e seu trabalho consistia, em grande parte, em viajar para diferentes países para atualizar os guias, ou criar novos. Adorava beber e sair com o marido, Franklin, um “americano típico”, por quem era fortemente apaixonada.  Feliz na carreira e no amor, ela começa a pensar na possibilidade de um filho.  Trata-se do momento em que muitas mulheres se perguntam:  “ e agora?”.  Eva não cai naquela conversa fácil de que toda mulher tem instinto maternal, toda mulher nasceu para ser mãe e blá blá blá. Ela reflete bastante sobre o assunto, principalmente sobre os “contras”, as desvantagens da procriação.  Porém jamais poderia imaginar, como ela própria diz, que uma dessas desvantagens é “seu filho pode acabar sendo assassino”. 

O filho de Eva é Kevin, que protagoniza um massacre na escola, matando colegas, uma professora e um funcionário da lanchonete. O livro conta a história de Kevin desde a época em que a idéia de ter um bebê começou a ser concebida na mente de Eva. Trata-se da versão sincera e dolorosa de uma mãe sobre a vida do seu filho assassino. 

Eva me conquistou nessa primeira parte e até mesmo quando teve depressão pós-parto porque ela sabia, e admitia, que há situações em que somos estrangeiros em nossa própria vida, em que não sentimos  aquilo que, “por definição”, deveríamos sentir, uma vez que nossas ambiguidades são infinitamente maiores do que qualquer manual de “bons sentimentos”. Somos todos culpados de “mau procedimento emocional”. 
Estar grávida é necessariamente um êxtase total? A grande realização de uma vida? Toda grávida é uma fonte perene de felicidade? Não ela:
“Sentia-me dispensável, jogada fora, engolida por um grande projeto biológico que não iniciei nem escolhi, que me produziu mas que também iria me mastigar e depois cuspir fora. Eu me sentia usada.”

Eva é de uma sinceridade tocante. 

E sua relação com Kevin é um grande mistério para ela mesma. 

O garoto, desde muito pequeno,  manipula o pai de modo enervante, e a cada passo vemos uma Eva que se dividia entre o horror e a dificuldade para lidar com essa situação, o que incluía a necessidade de proteger Celia, a filha mais nova.
Há excelentes discussões sobre a histeria do povo americano com os assassinatos em massa, sobre a tendência de ter sempre que culpar alguém e sobre a falta de estrutura psicológica  dos adolescentes para suportar adversidades mínimas.  Mas atenção: não se trata de um manual para identificar psicopatas ou para que os pais saibam como criar um filho "no caminho do bem". A autora não parece ter a pretensão de mostrar nenhuma resposta. 

O livro virou um bom filme, por sinal elogiado pela própria autora, Lionel Shriver. Mas, para não perder o clichê, digo que o livro me pareceu bem superior ao filme. 

Isso porque a maior riqueza do livro está nos pensamentos de Eva, nas suas dúvidas e questões tão humanas. Na sua tentativa de entender a si mesma, o mundo e o seu filho. É um livro para não esquecer.


“Talvez (...) haja o medo secreto de que acabaremos desapontando as convenções, na hora do vamos ver. Que, ao recebermos aquele telefonema fatal, avisando que nossa mãe está morta, não sentiremos nada. Pergunto-me se esse pequeno medo calado, inexprimível, é ainda mais agudo que o medo da má notícia em si: o de que vamos nos descobrir uns monstros. (...) Descobrir que uma amargura é de fato arrasadora nos serve de consolo, reafirma nossa humanidade." (Eva Khatchadourian)

Nenhum comentário: