quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Um cara gente fina

Antigamente eu tinha certo preconceito com biografias; achava que eram um gênero “menor”, uma perda de tempo, e, além disso, achava que eram livros muito chatos. Esse preconceito foi nocauteado pela leitura de “O bandido que sabia latim”, a biografia de Paulo Leminski. Depois veio "Tête à Tetê", de Hazel Rowley, espécie de biografia da famosa relação amorosa e intelectual de Jean Paul Sartre com Simone de Beauvoir. Em seguida me encantei com o maravilhoso trabalho de Benjamin Moser: "Clarice, uma biografia". Um livro de mais de seiscentas páginas que você quer ler de um fôlego só, e que traz luzes e mais luzes para a compreensão da obra de  Clarice Lispector.  Depois li a biografia de Sérgio Sampaio, sobre a qual já falei logo abaixo. E eis que acabei agora “Minha fama de mau”, a biografia do Tremendão Erasmo Carlos. 


Eu nunca fui fã da jovem guarda. Sempre achei uma musiquinha alienada e nada original. Do Erasmo propriamente gosto muito de duas músicas da fase pós jovem guarda: "Do fundo do meu coração", sobretudo a versão com Adriana Calcanhoto, e "Mesmo que seja eu", que é uma aula de filosofia, psicanálise, e configura o entendimento perfeito da alma feminina, dos nossos medos e ilusões. E, claro, amo quase todas as parcerias dele com Roberto Carlos. Mas então já começo a falar da biografia com uma observação: você não precisa ser fã de Erasmo para se deliciar com o livro.   Ler a biografia dele ajuda a entender o funcionamento da jovem guarda, que foi sem dúvida um movimento fundamental da música brasileira, e ajuda a traçar um perfil dessa tribo e a compará-la com as outras tribos que fizeram a belíssima diversidade da nossa música.  Pelo que vi até agora, acho que dá pra separar mais ou menos assim: havia a galera dos “malditos” , rebeldes, como Sergio Sampaio; havia os revoltados, porém mais elitizados e “elegantes”, como Chico; tinha o pessoal maluco beleza do tropicalismo, o low profile da bossa nova e os “boys” da jovem guarda. Claro que isso é uma análise bem superficial, e ainda tenho que ler no mínimo "Verdade Tropical" (de Caetano Veloso)  e "Chega de saudade" (de Ruy Castro) para me aventurar no assunto, mas é muito bacana ver como a música brasileira já foi rica. Por mais que existam excelentes compositores hoje em dia, existe a grande diferença de que no passado eles tocavam no rádio e participavam de programas de TV, e hoje em dia o que a gente vê na mídia é de uma pobreza desoladora. 

Então, Erasmo optou por fazer um livro alegre, muito alegre. A linguagem é informal, as letras são grandes, e o tempo inteiro parece que você está não lendo um livro e sim conversando com aquele seu amigo desbocado. Sim...o livro usa muitos palavrões e conta muitas aventuras sexuais!  Os momentos dolorosos, como o suicídio de Nara, ex-esposa dele, são tratados com sentimento, porém com brevidade. A ênfase é nos bons momentos. E claro que existem “causos” engraçadíssimos...E claro que vou citar alguns. 

Erasmo cresceu sem conhecer o pai, e a mãe dava o maior duro para sustentá-lo. Como todo menino  pobre daquela época, a diversão dele era andar nos grupinhos e ficar na rua brincando ou conversando. E havia duas vizinhas lindas, com 17 ou 18 anos, que eram o assunto principal da garotada, até que uma delas começou a namorar...um careca!  Aí a galera iniciou uma perseguição a esse careca, colando cartazes na rua e fazendo pichação com os dizeres: “cuidado com o careca”, ”O careca vem aí”, “O careca é cagão” e o super criativo “Merda não é tinta, dedo não é pincel. Quem quiser limpar a bunda, o careca é o seu papel”. 
Pobre do careca. Mas...ironia do destino: Erasmo, no futuro, iria sofrer com a calvície e fazer mil malabarismos para escondê-la.  Quando já era um senhor com início de careca, procurou um argentino que havia inventado um “tratamento revolucionário” contra a calvície. O tratamento consistia em aplicar um líquido miraculoso, massagear bem o couro cabeludo e depois....aplicar tapas e mais tapas na cabeça para “desentupir os poros” para que os cabelos crescessem. Alguns tapas e muitas gotinhas de sangue depois, ele desistiu do tratamento.  Em seguida viria a utilizar rolha (isso mesmo, rolha de vinho) queimada para disfarçar as entradas!! Mas, falando em cabelo, na adolescência ele era doido para ter o visual de Elvis Presley, e queria ter o cabelo liso com aquele topete, e então experimentou a “Timbolina”, uma gororoba feita por Timbó, um “paulista malandro e cheio de ginga”, que terminou por ferir todo o couro cabeludo. Mas Tim Maia foi adepto da timbolina por muito tempo, mantendo os cabelos lisinhos à base de muito formol! Devo comentar que as passagens que fazem referência a TIm Maia são muito loucas, mas não vou contar para manter no ar o suspense!

E o livro, claro, traz muita coisa de Roberto Carlos e da bela amizade entre os dois. É impossível não se emocionar com o trecho em que Roberto vai mostrar para ele, pela primeira vez, a canção “Amigo”. Erasmo fala de Roberto com muito carinho e em certos momentos até com reverência. É possível acompanhar já os primeiros indícios do caráter supersticioso do Rei. Em certa ocasião, Erasmo deu de presente para ele uma cabeça de búfalo empalhada (presente, devemos admitir, meio sem noção). Roberto agradeceu todo sem jeito, e depois Erasmo ouviu falar que ele enterrou a cabeça, porque se o animal estava morto e o corpo enterrado, a cabeça teria que ser enterrada também! E há o “causo” da confusão entre os “Carlos”. Numa festa, um casal bajula “Mr Carlos” (Erasmo) o tempo todo, acreditando que está falando com Roberto, e ao final se descobre o equívoco. 

São inúmeras situações engraçadas e emocionantes, e obviamente não dá para contar tudo aqui.  Ao final, fica aquela sensação de que rir de si mesmo é algo maravilhoso, porque é isso que Erasmo faz o tempo todo. Ele diz que sim, a jovem guarda era alienada; sim, em certa época de sua vida ele só pensava em mulheres e carrões; sim, ele pediu dinheiro emprestado ao Roberto Carlos....enfim, como diz aquela música dele, ele se assume como uma criança bobona e ao mesmo tempo como um homem; ele ri de suas limitações, encontra força para superar os seus problemas e mostra um coração aberto para a vida. Um cara gente fina, muito gente fina.  Recomendo a biografia para ser lida em um dia de sol, na beira da praia ou da piscina, ao lado de uma boa cerveja. Já recomendo até a cerveja: a deliciosa Saint gallen, de Teresópolis.   Mas se não tiver, vai uma Heineken, que a verdinha cumpre bem o seu papel.  E então é abrir o livro com suas letras grandalhonas, fotos engraçadas e rir dos causos e das aventuras do graaaande Erasmo.  Gente finíssima. 



PS: Muchas gracias aos amigos que me enchem de livros, CDs e DVDs, contribuindo para o polimento do meu verniz cultural :)

2 comentários:

Anônimo disse...

Olhya, confesso que tamb´m tinha um certo preconceito contra biografias até ler seu texto. Talvez pelo fato das que li para pesquisas escolares serem extremamente maçantes e nada atrativas, rs
Obrigada por abrir meus olhos para esse gênero do quel não chegava sequer perto!
Veim aqui tam´bém para agradecer sua delicada atenção em visitar o blog do K quando estive internada e "ora do ar". é muito bom saber que as pessoas se importam com a gente, mesmo que não nos conheçam pessoalmente. me senti realmente lisonjeada. Obrigada!

Lisandra disse...

Bem vinda de volta, Nira!!!