sexta-feira, 2 de julho de 2010

Crime e consumo

Se eu pudesse, dava um toque em meu destino
Não seria um peregrino nesse imenso mundo cão
Nem um bom menino que vendeu limão.
Trabalhou na feira pra comprar seu pão.
Não aprendia as maldades que essa vida tem
Mataria a minha fome sem ter que roubar ninguém
(Guará/Fernandinho)


Há muito tempo o perfil dos criminosos vem mudando. Não se trata de negligenciar ou subestimar a realidade social dura enfrentada por milhões de brasileiros, que já nascem sem qualquer expectativa e crescem sem nenhum amparo. No entanto não se pode negar que atualmente, na maioria dos casos, não se rouba mais para matar a fome; não é mais a pobreza ou a falta de alternativas que impulsiona as pessoas para a criminalidade.  
É notória a participação da classe média no cometimento de crimes. Aqui em Natal isso é muito visível. Qual a motivação para delinqüir de alguém que nunca passou fome, nunca teve grandes dificuldades na vida? Essa é uma questão que vem incomodando. 

Embora não seja possível encontrar uma resposta definitiva, certos indícios podem ser identificados com base na observação da vida cotidiana: dos programas de televisão, das músicas de sucesso, das festas, revistas,  internet, e sobretudo da observação das pessoas que circulam em supermercados, shoppings,  enfim, da observação dos padrões sociais vigentes.  

Na televisão são freqüentes os programas que, seja sob a forma de documentário, seja sob a forma de ficção, incentivam a sexualização excessiva, a beleza física, o sucesso financeiro e o que se convencionou chamar de “felicidade”.  Isso sem falar nos reality shows, que mostram diariamente a cultura da futilidade e a venda da dignidade de pessoas que literalmente topam tudo por fama (por mais transitória e precária que seja) e dinheiro. Em programas sobre cirurgia plástica ou simplesmente “incrementos no visual” é freqüente ouvir que fazer uma cirurgia vai implicar um recomeço na vida das pessoas; trocar o guarda-roupa vai significar renascimento e a beleza exterior vai despertar todo um leque de boas sensações, vai revelar a pessoa como ela é. Nesse contexto, o esvaziamento de sentido das palavras reflete o esvaziamento de sentido da própria vida. 

Há muito nos afastamos, também, dos tempos em que o trabalho era um valor. Há alguns anos Gonzaguinha cantava: Vida é trabalho; sem o seu trabalho, um homem não tem honra”. Falar de honra soa, no mínimo, antiquado. As pessoas não são mais admiradas pelo seu trabalho, nem buscam isso. Querem somente o dinheiro fácil, que possibilite ter os carrões da moda, as roupas da moda, o corpo perfeito. E a vaidade e o consumo não são mais “privilégios” das mulheres. Não é a toa que proliferam os “bombadinhos” dando cavalos de pau em seus carros importados. Com isso, surgem as grandes riquezas desprovidas de legitimidade. Ora, se os playboys não trabalham, não fazem nada e são cheios da grana, por que os garotos que moram em favelas vão suportar calados essa humilhação? Por que têm que viver com tão pouco, por que têm que trabalhar como idiotas? E assim uma coisa alimenta a outra; o desejo de consumir conduz ao crime sem levar em conta a classe social. 

E como deixar de mencionar as ansiosas mãe “gatinhas”, que desfilam pelos shoppings competindo com suas filhas, as quais desde cedo aprendem a lógica do consumo. E os filhinhos do papai, que nunca souberam o que é limite e que são protegidos na alegria e na tristeza (tristeza dos outros, das vítimas).  

O professor Hermógenes , citando Erich Fromm, diz que a sociedade contemporânea está doente e todo indivíduo bem ajustado a ela não deixa de, consequentemente, ser um doente.
Sofremos de uma epidemia consumista e de uma carência crônica de valores. É a sociedade da busca da perfeição física, do consumo excessivo como requisito para a satisfação interior; é a sociedade da aparência e da ostentação, dos limites frouxos e do vale tudo.
Vale tudo para ter o dinheiro da farra e da droga no fim de semana, a camisa de marca para vestir, o carro para impressionar as mulheres ou, no caso delas, para colocar silicone, fazer lipo e usar as roupas da moda. Vale dar golpes, vale fraudar, vale traficar. Hoje se pode tudo. Pode até, também,  estuprar e matar. 

Na nossa pobre e provinciana cidade vemos os exemplos. Natal é uma terra sem dono e sem lei, governada por interesses particulares e regida pelo nepotismo e pelo apadrinhamento. Uma cidade em que todo mundo tem que saber "com quem está falando". Triste cidade,  que produz pouco, mas que transpira “riqueza”, vide os carrões que circulam, vide a ostentação da classe alta. Para completar, temos a estagnação moral e a impunidade.  

A única esperança de que esse ciclo se feche é a de que um dia os responsáveis por ele sejam atingidos em sua própria carne. Sim, estou rogando uma praga. É que sinceramente não vejo outra saída para fechar esse ciclo de crime que jamais vem seguido de castigo. 


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