segunda-feira, 19 de julho de 2010

Música para o coração

Não consigo imaginar um mundo sem música, uma vida sem trilha sonora. A música é uma espécie de máquina do tempo: quem nunca foi pego de surpresa por uma melodia antiga, que não ouvia há anos, e de repente se viu em outro lugar, outra época, reviveu sentimentos, cheiros, cores…às vezes até sem lembrar nomes, datas, mas tendo de novo as mesmas sensações. 
 Bem pequena, eu escutava um rádio enorme, antigo, que só sintonizava AM. Meu primo me provocava dizendo que era uma “fubica velha”, mas eu amava aquele rádio. Passava horas ouvindo notícias e comerciais, esperando ansiosa pelos meus cinco minutos de êxtase, quando finalmente tocava alguma canção.  Depois ganhei um “radinho de pilha”, desses que os aposentados até hoje usam para ouvir jogos sentados em bancos de praças.  
Porém nada me fascinava mais do que os toca-discos e os discos que existiam na casa da minha tia, onde eu costumava passar férias.  Em uma determinada época, eis que surge uma novidade: o “três-em-um”, que tocava fitas cassetes, AM/FM e discos. Minha tia comprou e para minha felicidade doou para minha mãe o antigo toca-discos, junto com alguns compactos. Havia um compacto do Blitz, em que de um lado as vozes histéricas pediam “Garçom, traz uma porção de bata frita” e do outro não havia música, e sim apenas Evandro Mesquita dizendo: “nada, nada, nada, nada…” E tinha Gigliola Cinquetti, Perla, Fabio Junior, Balão Mágico, Gilbert, Roberto Carlos, Fagner... e o que eu mais adorava:  Lílian cantando “Eu sou rebelde”, a música-tema da minha infância. É que eu fui uma criança meio desajeitada, do tipo que nunca é escolhida “rainha do milho” e não se integrava nos grupos para participar das dancinhas na escola. Na época do “Ursinho Pimpão”, do Balão Mágico, eu cheguei a decorar alguns passinhos da dança, mas nunca apresentei. Fiquei só de longe invejando as roupinhas e a meia calça cor de rosa das minhas colegas.  Então ouvir “eu sou rebelde porque o mundo quis assim” enchia o meu mundo infantil de melodrama e de razão! 
Outra memória que tenho é a de Fagner invadindo a casa com aquela voz marcante, cantando “Fanatismo” em um disco que tinha também “Años”, em dueto com Mercedes Sosa. E me emocionava, ah, como me entristecia ouvi-lo dizer “que tu és como um deus, princípio e fim.” Só muitos anos depois, já adulta, descobri que a letra é na verdade uma poesia da portuguesa  Florbela Espanca.
Ainda nesse tempo, lembro também de como quis fugir do enterro do meu avô paterno, e meu modo de fugir foi me escondendo atrás de uma porta para cantar. Cantar e esquecer. Naquela época, quando alguém morria a gente tinha que ficar uns dias sem ligar rádio, televisão, enfim, o luto era bem rígido.  Eu me escondi para cantar, e estava nesse encontro clandestino com o meu avô ainda vivo, longe do caixão, longe das pessoas de preto, quando fui repreendida por alguém que disse que era pecado ficar cantando em enterro. E assim aquela mulher de véu preto e temente ao seu Deus e à sua noção trôpega de pecado me encheu de culpa e me trouxe de volta a uma realidade muda e surreal, de sentimentos afetados, em que a obediência aos códigos de conduta reprimia a mais sincera forma de sentir saudade de que eu era capaz. 


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