segunda-feira, 26 de julho de 2010

O direito de odiar

Para ser grande, sê inteiro:
nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. 
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
(Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa)

O ódio é considerado um sentimento ruim. As religiões, a moral e as regras do politicamente correto determinam que não se deve odiar.  Mas será que os sentimentos são bons ou ruins por si mesmos, e estão subordinados à nossa vontade? 
Antes de qualquer coisa, um esclarecimento: não falo aqui do ódio institucionalizado, como o que motivou o nazismo, ou do ódio enraizado pelo preconceito, ou ainda do ódio cultivado e praticamente exercitado como estilo de vida. Esses são casos extremos, casos de distorção. Falo do ódio como justa reação a um mal, como indignação, revolta e reflexo. Ódio como processo, como caminho. Vou chamar esse sentimento de ódio justo. 
Sentir raiva, ódio e desejo de vingança é humano e instintivo. Querer sufocar essa raiva é cultural. Os sentimentos simplesmente surgem, e lutar contra eles de modo repressivo é uma luta vã. O ódio é um tipo de paixão, é um sentimento arrebatador. Ninguém decide odiar, como ninguém decide, também, amar. Sendo assim, decidir perdoar é uma medida totalmente inócua. O perdão vem quando há espaço para ele. Aos que argumentam que perdoar é divino, respondo que somos simplesmente humanos e estamos continuamente aprendendo a viver. E lembro que no novo testamento consta uma passagem em que Jesus expulsou comerciantes do templo, virou mesas e derramou dinheiro pelo chão. Ou seja, ele reagiu, e reagiu com fúria. 
Devemos nos permitir a fúria, a raiva. Odiar faz bem ao estômago, à respiração. Um ódio sufocado gera gastrite, deixa a respiração presa, dá dor de cabeça, nó na garganta. Reprimir os sentimentos a pretexto de perdoar não conduz à paz verdadeira. Quem nunca odiou nada ou ninguém ou atingiu um altíssimo nível de elevação espiritual ou está mentindo. 
Mas como exercitar o sagrado direito de odiar sem se envenenar, sem deixar que a vida fique parada nessa estação? 
Acredito que a melhor maneira é, em primeiro lugar, permitir-se sentir. Os psicólogos costumam ressaltar, por exemplo, a importância do luto, da vivência da dor na superação de uma perda. É preciso ficar triste, é preciso encarar de frente o sofrimento para poder se reerguer. Sem isso, a recuperação é superficial. Então defendo a mesma coisa: é preciso viver o ódio justo. Ninguém pode ser obrigado a perdoar uma maldade deliberada, sobretudo quando o malfeitor não expressa nenhum arrependimento; ao contrário, vangloria-se de suas atitudes. Quem não conhece pessoas assim? Consideram-se onipotentes e se acham no direito de ofender e humilhar. 
Pois então fica decretado: Todo ser humano tem o direito de odiar com ódio justo, de não interromper o passeio vigoroso desse sentimento pela alma. Porque crescer significa conhecer e aceitar a própria condição humana, e não se esquivar dela. Um dia o ódio se cansa, vai embora,  e o perdão vem com naturalidade e ocupa o seu lugar. Ou não.   


2 comentários:

LadiesWoman disse...

Belo texto! Tens razão. Teu vasto conhecimento sobre os conceitos humanos fizeram de teu texto uma obra prima do saber. Meus parabéns!

Lisandra disse...

ah, obrigada pelo elogio. Mas não tenho conhecimento não. Sou só uma pessoa curiosa e observadora, que tenta ser honesta com os próprios sentimentos.
:)