segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Até minh'alma se sentir beijada

Qual o elogio supremo, inesquecível, que faria uma mulher prender involuntariamente a respiração?
“Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão”
(Chico Buarque)
Impressão minha ou são as vitrines que ficam olhando enquanto ela passa? Ela passa, e se multiplica, e entorna poesia pelo chão. Se alguém tivesse me dito isso alguma vez, eu jamais esqueceria. Entornar poesia pelo chão, ao passar. Não se esquece uma coisa tão linda. É um elogio de tirar o fôlego. 
Falar em Chico Buarque às vezes é meio incômodo, porque soa como clichê. Porque ele é praticamente unanimidade, é considerado o maior letrista deste país, desvenda a alma das mulheres, etc etc etc. Mas me rendo ao clichê, porque ele traduz a mais pura verdade. Sou fascinada por algumas músicas dele, de outras apenas gosto. Deve ter alguma que não me agrade, mas agora nenhuma desse tipo me vem à mente. O fato é que às vezes escuto com um pouco mais de atenção algumas dessas de que apenas gosto e me surpreendo vendo que também são perfeitas. Assim foi com “as vitrines” neste fim de semana. 
Fiquei imaginando a história: eles são amigos. Talvez até trabalhem juntos. Ele a ama, ela não sabe, ou, se sabe, finge que não. É sábado à tarde, ela vai ao cinema com as amigas. O clima está ameno, e é uma cidade que ainda tem um cinema fora do shopping,  ao lado de uma daquelas galerias comerciais, típicas dos velhos centros. Ela sai da sessão, leve, frouxa de rir. Ele está lá, sentado, observando, à distância, como um vigia, com inveja e ciúme do mundo inteiro, que também pode observá-la à vontade, impunemente. E ela passa, distraída. E a cada passo...é como se exalasse poesia através do riso, através do movimento do corpo. E ele sai catando essa poesia, um servo, um arauto, que faz sua aclamação silenciosamente. 
Ah...
Mas  não vamos deixar assim, tão desconsolado e apaixonado e sedento esse pobre vigia. 
Vamos supor que em um belo dia ela perceba a presença dele. Um dia ele chega, "diferente do seu jeito de sempre chegar...” e então é notado, e faz o convite, e ela aceita, e os dois vão juntos ao cinema, e se divertem, e riem, e  se beijam, e viram amantes. 
E ela se surpreende, e o relacionamento dos dois é pura emoção. Ela se apaixona. E certo dia vai falar sobre ele pra uma amiga, e diz assim:
“O meu amor tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada”
Não queria interromper a história e estragar o clima com um palavrão, mas putaquepariu. Até a alma se sentir beijada. Essa é uma das músicas mais sensuais que eu conheço. A alma se sentir beijada é de uma fineza de sensações e de sentimentos muito difícil de ser alcançada. É delicado e avassalador ao mesmo tempo. É de arrepiar. 
E não sei dizer se esse amor entre o vigia-voyeur e a bela moça que entornava poesia durou, ou se acabou logo, mas só sei que foi de uma intensidade tão grande e tão bonita e tão luminosa, “que o mundo compreendeu e o dia amanheceu em paz.”


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