sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Feliz aniversário

46 anos. Um marido, uma filha. E os penduricalhos: sogra, sogro. Nenhum amante, que o último já faz dois anos. 
Um marido, o meu marido. Desde menina já sabia que tinha que ser dona de um, só não esperava que fosse assim, essa coisa estranha, nojenta, essa barriga de cerveja, a careca espalhada na cabeça. E mais,  a agonia uma vez por semana, parecia uma humilhação, era uma humilhação, aquele jeito gordo de ficar respirando, babando em cima de mim, escorrendo um suor seboso, aquela coisa pesada. E a risada alta, escandalosa. As malditas camisas sem manga no fim de semana. 
Uma filha. Eu também sabia que ia ter uma.  Era com muito gosto que eu embalava as bonecas, cantava pra elas, trocava as roupinhas...Mas aquela menina...até que não era feia, não puxou ao pai, mas tem uma coisa longe, sei lá, de filha que não é minha. É uma menina meio besta, que eu crio, visto, dou de comer, mas é como se fosse filha dos outros.  Quando ela nasceu, não aconteceu nada do que eu tinha lido na revista Cláudia: “Amor incondicional”, “realização enquanto mulher”, palavreado, tudo palavreado. 
A minha sogra é uma velha insuportável, orgulhosa do filho professor, acha que ser professor é a coisa mais importante do mundo. Ela sabe que eu sei que as piadinhas sobre “não ter curso superior”, “não ter formação”, são todas pra mim. Ela sabe. Eu sei. Tudo dela é melhor, tudo é superior. O sogro, meu deus do céu, um panaca. Um manobrado. Vive com aquele olhar perdido no tempo, o jeitão embasbacado, e concorda com tudo que a mulher diz. Pelo menos não tem barriga, isso é verdade. Coroa enxuto, corre toda manhã, é conservado, o velho, apesar da idade.  Pensando bem, talvez a pasmaceira seja só disfarce, inda mais com essa historia de viagra, pode ser é que ele viva se esparramando nas outras mulheres, que mulher doida por homem é o que não falta. 
Homem é que tá difícil, ainda mais nessa idade, com os peitos caídos, sem dinheiro pra silicone nem pra botox. O último foi um rapaz de vinte e oito, ai meu deus, vinte e oito anos, dói de saudade só de pensar. Estudava na universidade, fazia filosofia e tinha essa história de que mulher mais velha é mais interessante...instigante, ele gostava de dizer “instigante”. Eu é que não ia contestar, ué...Tava era muito bom pra mim. Aquele corpo comprido, lisinho, aquele fogo...Mas veio outra e tirou. Ele me apareceu com uma lenga lenga danada, que eu era incrível, que isso e aquilo, mas é a velha história: começou a namorar com uma que é carne fresquinha, da faculdade também, quer noivar, fazer filho, e isso, meu amor, eu sei, eu sempre soube que ia acontecer. Homem é assim, pode estudar a filosofia do mundo inteiro, mas quer mesmo de verdade é uma cinturinha fina, uma carne dura, um lugarzinho só dele, por onde ainda não passou menino. 
E agora essa bendita festa de aniversário, um churrasco, o povo se empanturrando de carne e lingüiça de porco, enchendo as fuças de cerveja e fingindo que é por mim. Grande bosta, completar 46 anos desse jeito.  Ah, se eu pudesse dizer um dia a cada um o que eles são de verdade. Claro que eles  iam me xingar também, falar o que eu já sei: que eu tô velha, não tenho curso superior, envergonho o marido professor porque costuro pra fora, essa lenga lenga toda. Mas se a velha soubesse como ela é ridícula, como enche o peito pra louvar ninharia, se o velho soubesse como é panaca, se a menina soubesse que quero mais é que ela vá logo embora cuidar da vida, se o nojento soubesse o quanto me dá vontade de vomitar quando tá perto do sábado, quando ele vem babar em cima de mim, ah, se soubessem. Um dia eu ainda digo. Mas agora com licença senão daqui a pouco essa corja acaba com a  lingüiça e não vai sobrar nada pra mim. 


(PS: estorinha nitidamente inspirada no conto homônimo de Clarice Lispector)

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