segunda-feira, 14 de junho de 2010

A ternura que vai no fio da lâmina samurai


Quem viu “O último samurai” certamente se recorda do suicídio ritual que eles realizavam, o chamado seppuku (ou harakiri). O objetivo do suicídio é restabelecer a honra do samurai ou da sua família,  evitar a rendição e o aprisionamento por tropas inimigas, ou ainda a demonstração de devoção ou lealdade ao seu senhor. O suicídio em si é precedido de diversos atos, como banhos, purificações etc. O samurai corta o seu ventre e morre por evisceração. Caso o processo esteja muito lento e doloroso, uma espécie de assistente, chamado kaishakunin, decepa a sua cabeça, a qual, todavia, não pode rolar no chão, pois isso é considerado desonra. A cabeça tem que ficar pendendo. Informações interessantes podem ser encontradas aqui.

Mas apesar do caráter singular desse suicídio, o ritual em si não foi o que mais despertou a minha atenção, e sim o modo como esses guerreiros lidavam com a morte. Para nós, ocidentais, a morte é tabu, é o fim, e mesmo entre os mais religiosos é raro encontrar alguém que encare a sua proximidade e a sua certeza  com serenidade. É difícil, por exemplo,  falar sobre a morte com crianças. É um assunto duro, e tanto a morte, quanto o assunto “morte”, são evitados a todo custo.  Os samurais, todavia, parecem ter uma visão completamente diferente. Um dos tópicos de seu código de conduta é eu não tenho vida ou morte, faço das duas uma, tenho vida e morte. Sábios samurais. Vida e morte são mesmo inseparáveis. Uma contém a outra. Para ilustrar essa grande diferença de concepção da mesma idéia, conto a história de Yukio Mishima.

Yukio  era descendente de família samurai. Foi um escritor de diversos romances e também de narrativas curtas (espécies de contos). Chegou a atuar num filme de gângsters, a gravar discos e participar de programas de televisão. Era conhecido por um certo exibicionismo, e também pelo homossexualismo. Cultuava as artes marciais e era existencialista. Ufa...Mas é isso mesmo. Mishima não era um só. E ele cresceu numa época difícil para o seu país, vendo a cultura e os valores antigos serem estilhaçados.  E foi esse japonês, que se multiplicou durante a vida, quem resolveu unir as pontas da sua obra literária e filosófica e de sua própria existência com um harakiri.

Em um belo dia do mês de novembro de 1970, ele seqüestrou o comandante do quartel das forças armadas de Tóquio, junto com os companheiros do grupo Tate no Kai. Fez um discurso contra a ocidentalização do Japão e a decadência dos códigos de honra, discurso do qual muitos riram. Depois, para surpresa e terror de quem assistia, praticou o harakiri

O que impressiona é justamente a preparação do escritor. Antes do suicídio ele terminou seus livros, sendo o último, Sol e aço, uma reflexão sobre as relações entre o corpo e a mente, o fundo e a superfície, a vida mental e a existência corpórea (In: Leminski).  E o mais surpreendente: Yukio estava, então, no auge da sua forma física. E era proposital. Ele se preparou para o momento, pois quis dar à morte o melhor de si. Não um corpo decrépito ou frágil. Não a rendição de quem não tem perspectivas ou perdeu o “gosto” pela vida. A morte parece ter sido o ápice de todo o seu trabalho, de todo o seu esforço...de toda a sua vida. O que movia Yukio? Não sei...rigidez, loucura, anacronismos, lealdade, busca de algo que não existia mais...Paulo Leminski, poeta curitibano, muitas vezes apelidado de “samurai malandro”, disse que Yukio, com seu sangue, escreveu com aço na pele da sua vida as letras de sangue que diziam: “Eu não concordo”. Mishima não concordava com o que via ao seu redor e decidiu agir, costurando as suas contradições com o fio brilhante e polêmico do suicídio ritual. 
Leminski  fez um belo poema chamado Aço e Flor inspirado em Yukio:

Quem nunca viu 
que a flor, a faca e a fera 
tanto fez como tanto faz, 
e a forte flor que a faca faz 
na fraca carne, 
um pouco menos, um pouco mais, 
quem nunca viu 
a ternura que vai 
no fio da lâmina samurai, 
esse, nunca vai ser capaz

Particularmente não tenho nenhum juízo de valor sobre o harakiri ou sobre o controverso Yukio; apenas deixo que o meu espanto e o meu encanto fluam diante de um mundo conceitual totalmente diverso do que eu conhecia, repleto de lâminas, sangue e...uma estranha delicadeza. 


2 comentários:

Ribamar Lopes disse...

Muito bom! A propósito quanto à visão japonesa da morte imperdível o filme japonês "A partida".

Lisandra disse...

Valeu pela dica...vou baixar :)