terça-feira, 29 de junho de 2010

Historinha desromântica

I. O NOME  
Não tinha dúvidas: nome era sina. E a mãe não se atualizava, até hoje enchia o saco com aquelas músicas velhas e chorosas, um tal de Cartola e a fulaninha, a Dolores Duran. Pronto. Porque gostava da fulaninha, a filha tinha que se chamar Dolores do Nascimento.
DOLORES
Origem: LATIM
Significado: LAMENTAÇÕES. 
Como se não bastasse, ainda era um nome totalmente fora de moda. Bem que podia se chamar Patrícia, Gisele, Adriana ou até mesmo Maria. Maria ainda era aceitável. Mas Dolores…ah, meu pai do céu! 

 II. A SINA 
Aquele Kitnet mais parecia uma casa de cachorro. Tinha todas as semelhanças: ficava no quintal de uma velha senhora - o conhecido “puxadinho” feito para alugar - era escuro, pequeno, escondido.  Micro sala, mini banheiro e quartinho. Quartinho da mãe, sala de Dolores. Dormia na sala.  Saía de casa às sete da manhã, corria para pegar o ônibus.  Servia café e água numa loja chique da Afonso Pena. Só conseguiu aquele emprego porque sua mãe trabalhou com dedicação absoluta durante vinte anos na casa da dona da loja. Uma dedicação que beirava a humilhação. Mas se não fosse por isso, não seria aceita em loja chique, mesmo para servir água e café. Tinha certeza. Ai, era feia, muito feia. Baixinha. Gordinha. Cabelos imprestáveis e sempre presos. Em tempos de escova definitiva, progressiva, escova de leite, morango e chocolate aquele cabelo era uma afronta. E o nariz? Nariz grosseiro, de lavrador. Pele áspera. Parecia mais uma bóia-fria, cortadora de cana.  
Mas qual era a sina mesmo, imposta por esse nome horrendo que significa “lamentações”? Não era só a de ser pobre e feia não. Era a de ser invisível. Davam-lhe ordens como quem fala com uma parede.  Ia servir água? Não passava de um veículo que transportava o copo. Mas terminou aceitando sua invisibilidade e, mais do que isso, aprendeu a exercitá-la. Um perfeito robô ao servir chazinhos e cafés, uma branca e inerte parede. 
Só que a noite era impiedosa. Quando deitava, exausta do trabalho e do cursinho, naquele colchão espremido entre a TV e o sofá, a invisibilidade lhe parecia insuportável. Um olhar, era tudo que desejava nessas horas.  Recitava mentalmente como se fosse um mantra: bastaria um olhar.  Um que fosse só seu. Já passava dos trinta e isso nunca tinha acontecido de verdade...

 III. UM OUTRO NOME   

“Incenso fosse corpo” 

Teu corpo, incensário
Insensato
Desprotegido
Nu
Aberto 

Rijo, me acendo
Te penetro, me consumo 
Me dissipo, te perfumo

Cinzas, o resultado
Dessa paixão insana e crua
E teu corpo, ali parado
Esperando, à luz da lua
Outro incenso, outro amor
Que em você se desconstrua

Terminou os versos e sorriu, satisfeito. Nem precisou do dicionário dessa vez. Ah, estava progredindo nas poesias. 
O nome era Carlos. Roberto Carlos, mas ele preferia pensar que era só Carlos, como o poeta que também era funcionário público. 

IV. UMA OUTRA SINA 
Carimbos, papéis timbrados, impressoras, computadores, mesas, arquivos, papel, muito papel. E separava, carimbava, arquivava. Robô que durante quase todo o dia ficava vendo o passeio de letras frias diante dos olhos. 
Mas a noite, ah, a noite era outra coisa. Eram os versos, o erotismo, e tinha mesmo ocasiões em que ia às lágrimas lendo os próprios poemas. Quando tomava vinho, então, era um êxtase. Um dia haveria de mostrá-los a alguém, e ela ia ficar doidinha...
Enquanto esse dia não chegava, andava por aí, olhar baixo, sem muita coragem de encarar as mulheres. Ô povinho complicado, difícil...elas sempre têm essa história de idealizar demais, essa coisa infantil e fútil de ainda querer príncipes...ele sabia que não era um príncipe, tinha consciência disso.  Era apenas o vizinho sem rosto que não faz barulho, o funcionário pontual, cordial e inexpressivo. 

V. O ENCONTRO 
Fim de ano, véspera de natal, caos. Dolores teve que fazer três horas extras. Onze horas de trabalho, vejam só. Não tinha jeito, naquela noite não iria mais para o cursinho.  De qualquer modo, não ir para o cursinho era até bom, pois poderia dormir mais cedo.  Isso lhe deu uma animação que gerou um esboço de sorriso, e andava sorrindo distraída quando...
 Carlos voltava de uma loja com o presente da sua mãe, e com o encontrão o presente caiu. Constrangidos, ambos se abaixaram ao mesmo tempo para apanhar o pacote, como naquelas velhas cenas de novela.   Quando retornaram (foi ele quem pegou o pacote), o olhar de um penetrou no olhar do outro. 
- Você é bonita …
- Ta brincando!
- Claro que é...eu adoraria soltar seus cabelos!
- isso seria estranho…
- não, não seria. Seria ótimo. 
- Mas estou tão cansada…
- Posso desapertar tua roupa e te livrar do cansaço…
-  (…) ?
- não, não desvie os olhos. Experimente... 
Bom, mas o diálogo acima foi apenas imaginado pelo narrador. O que aconteceu de verdade foi uma troca muda de olhares e uma pequena flama de interesse mútuo. Mas os dois, na timidez forjada e maturada no fracasso, logo apagaram essa faísca e retomaram suas expressões habituais. Ele pediu desculpas a ela, como quem pede a uma parede inerte e branca. Ela pediu desculpas a ele, como quem cumprimenta o vizinho silencioso e sem rosto. 
Dolores tomou seu ônibus e se foi, definitivamente, para Lagoa Seca; Carlos se dirigiu para  Cidade da Esperança. Os dois nunca mais se viram. 


(2006. PS: O título do poema do personagem Carlos foi inspirado numa poesia de Leminski chamada "Incenso fosse música")

Um comentário:

Hugus Galvus disse...

Amor, corpo, roupa... Vestígios de um compasso, descompassado desejo de sentir... O outro nu-outro, pele-a-pele, nada mais do que isso... se risco, se feitiço de paixão, de dor dar partida, apenas sentimento de bem-querer, bem-viver, bem-sentir. Beijo Li!